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Precisamos falar sobre Brasil

Benedito Cerezzo Pereira Filho (*) | 24/11/2021 08:30

No livro e no filme, a ele adaptado, “Precisamos falar sobre Kevin”, é retratada a (não) relação entre mãe e filho, uma porque não aceitava ou não compreendia seu “estado” de mãe, ou outro, diante da repulsa, passava a vê-la, e o mundo como um todo, uma ameaça. O fim, como não poderia deixar de ser, é trágico. O enredo, de plano, tanto no livro, como no filme, nos deixa uma conclusão: a necessidade de se tratar os assuntos angustiantes de forma clara e responsável, antes que eles conduzam a um desfecho calamitoso.

Buscas livres por críticas sobre o drama, apontam para a importância do amor, do carinho, afeto, enfim, da atenção que toda relação que permeia o ser humano deve existir. A maneira adequada de se enfrentar um problema é justamente falar sobre ele, jamais o “esquecer”. Esse diálogo só pode ser construído levando-se em consideração o passado e o que se espera para o futuro, visando, assim, um presente “sadio”. Negar o passado, ou até mesmo esquecê-lo, é a forma mais rápida de se eclodir crises, distúrbios, mal-estares, redundando em retrocessos. Bem por isso, precisamos falar sobre Brasil. No caso “Kevin”, a fala deveria levar em consideração a relação familiar, de afeto, de construção de um meio ambiente saudável. No caso Brasil, igualmente, devese ter o mesmo objetivo, ou, então, a partir dele, cobrando, de todos, posturas sempre inclusivas.

Como estamos falando de um ente abstrato – Estado Brasileiro – que se faz presente, ou seja, é presentado por nós, entendê-lo é, em última análise, compreender a nós mesmos e nosso papel na construção do ser-humano. Esse convívio, como bem sabemos, é regido por normas de condutas, prescritivas e descritivas, que nos conduzem, ou que deveriam nos conduzir a um convívio harmonioso.

Se assim o é, falar sobre Brasil, pressupõe, entre outras tantas nuances, concretizar, no seu grau máximo, os preceitos que lhes são fundamentais consoante previsão expressa do artigo 1º e 3º da Constituição Federal, destacando-se que Brasil “constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos”, dentre outros, “a dignidade da pessoa humana”; sendo que “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Falar sobre Brasil, portanto, pressupõe averiguar como esses preceitos fundamentais estão sendo concretizados no dia a dia por aqueles que têm, justamente, o mandato outorgado pelo povo, parágrafo único do artigo 1º da Constituição e, igualmente, verificar a que medida esse povo interage e aceita o modo pelo qual a construção da sociedade está ocorrendo. Vamos, então, eleger um para análise: sem preconceito de cor.

Neste item, infelizmente, o retrocesso é alarmante. Nunca tivemos grandes avanços, considerados como compreensão social e realizações de políticas públicas voltadas a colocar em práticas medidas estruturantes capazes de permitir, no mínimo, condições dignas de sobrevivência ao povo negro que foi escravizado e ainda sofre as consequências dessa horrível realidade brasileira, último país do ocidente a abolir, formalmente, a escravidão.

Contudo, atualmente os retrocessos são inacreditáveis. A dificuldade e raridade com que o assunto era tratado, falado, agora, praticamente, a (não)política governamental faz questão de esquecer o tema e joga no limbo a crucial demanda racial. O Presidente da Fundação Palmares, paradoxalmente, é o primeiro a abandonar a luta do negro e pelo negro. Suas declarações são um escárnio: “Não tenho que admirar Zumbi dos Palmares, que pra mim era um filho da puta que escravizava pretos. Não tenho que apoiar Dia da Consciência Negra. Aqui não vai ter, zero – aqui vai ser zero pra [Dia da] Consciência Negra”. De prêmio, ganhou, por decreto da Presidência, a chefia de um comitê para gerir, justamente, o Memorial Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da BarrigaAL. O secretário da cultura do governo federal, Mário Frias, segue seu (não)exemplo e ataca o historiador e ativista negro Jorge Manoel, reportando a uma fala dele da seguinte forma: “Não sei. Mas se soubesse diria que ele precisa de um bom banho”. Esse é o retrato do Brasil e a forma como a demanda racial está sendo tratada. Enquanto isso, “Mortalidade por demência no país cresce 65% em negros e cai 9% em brancos. Levantamento nacional reforça a disparidade no acesso da população negra ao SUS e a necessidade de ações para aumentar o direito à saúde, especialmente durante a pandemia” .

Esse descaso explica o fato de que o dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, lembrando os 70 anos da aprovação da Lei n. 1.390, mas conhecida como Lei Afonso Arinos, a primeira norma contra o racismo no Brasil, praticamente passou em branco. Quase nada foi discutido sobre como está a política de combate ao racismo no Brasil. Aliás, vivemos um momento de inversão dos fatos e inverdades são propagadas com ares de credibilidade, já que pronunciada por autoridades. Segundo notícia do Jornal O Globo, somente o chefe do executivo federal “deu 1.682 declarações falsas ou enganosas em 2020”.

Que esse de 20 de novembro sirva para nos conscientizar de que a luta do negro pela sua dignidade e existência não foi e não será em vão. A USP deu o exemplo ao conceder o título de doutor “honoris causa” a Luiz Gama, fundamentando estar a “homenagem ancorada em sua importância na história recente do Brasil e em sua excelência enquanto personalidade intelectual”. A “consciência negra” necessita, urgentemente, que tenhamos, primeiro, “uma consciência de Brasil”. Precisamos, pois, falar sobre Brasil.

(*) Benedito Cerezzo Pereira Filho é professor da Faculdade de Direito da UnB.

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