Proteína intestinal é biomarcadora da infecção por sars-cov-2
Desde o primeiro surto de Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) provocada pelo sars-cov na China, em 2002, e de Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) provocada por outra variante dos coronavírus, o mers-cov, em 2012, havia relatos de alterações de funcionamento do trato gastrointestinal, além de sintomas comuns como o quadro respiratório agudo com tosse e febre alta. Evidências apontaram náuseas, vômito e diarreia no início da infecção, bem como a presença de partículas virais no intestino daqueles pacientes que foram a óbito. Os mesmos sintomas e alterações gastrointestinais são relatados na pandemia por sars-cov-2 (novo coronavírus) em 2020-2021. Em estudo publicado na revista científica International Journal of Infectious Diseases os pesquisadores empregaram o uso de proteína intestinal como biomarcador da infecção por sars-cov-2 para o prognóstico clínico da covid-19.
As células epiteliais intestinais expressam muito mais ECA2 (enzima conversora de angiotensina) que outros tecidos, sendo uma evidência forte de que o sars-cov-2 pode infectar essas células e se replicar nessa região, uma vez que a ECA2 funciona como um sítio de ligação para os coronavírus. Infectologistas revelam que pacientes com covid-19 eliminam partículas virais nas fezes por várias semanas – até 40 dias pós-infecção – em quantidades muito maiores que aquelas observadas no plasma ou em swab nasofaríngeo, sugerindo que o sars-cov-2 pode usar o intestino como reservatório de longa duração para transmissão do coronavírus, mesmo em pacientes assintomáticos respiratórios.
Cerca de 10% a 30% dos casos de covid-19 apresentaram apenas sintomas gastrointestinais nos primeiros dias (entre o terceiro e o quinto dia) e o aparecimento de sintomas respiratórios só se deu por volta do sétimo dia, como relata estudo americano. Uma vez que as alterações gastrointestinais antecedem os sintomas respiratórios, pacientes que chegam ao ambulatório ou em emergência relatando diarreia não deveriam ser negligenciados como possíveis infectados com o sars-cov-2, podendo ser submetidos ao diagnóstico viral em swab retal.
Nessa perspectiva, a identificação de um marcador de lesão intestinal associada a uma resposta inflamatória aumentada e de fácil detecção, na fase admissional do paciente, pode ser um fator preditivo para o aparecimento de complicações da covid-19.
O estudo multicêntrico envolvendo cinco hospitais da região de Ribeirão Preto – Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, Hospital Municipal Santa Lydia, Santa Casa de Misericórdia de Ribeirão Preto, Hospital Unimed Ribeirão e o Hospital e Maternidade Santa Isabel de Jaboticabal – com mais de 400 pacientes, empregou o uso da I-FABP (proteína ligadora de ácidos graxos intestinal) como biomarcador da infecção por sars-cov-2. A I-FABP é considerada um biomarcador importante de lesão às células epiteliais intestinais em patologias como sepse, síndrome do intestino irritado, doença de Crohn, colite ulcerativa e doença celíaca. A coleta de amostras de pacientes não vacinados se deu entre abril e setembro de 2020.
Um biomarcador de lesão intestinal
A I-FABP é uma proteína citoplasmática específica do intestino que pode ser liberada para a circulação sanguínea quando ocorrem lesões nas células intestinais. Como pode ser filtrada pelos rins e excretada através da urina, é passível de ser detectada no plasma ou na urina – métodos não invasivos para avaliar possíveis lesões no epitélio intestinal. Além do mais, a medida urinária permite um bom fator de correção e avaliação da funcionalidade renal – excreção de creatinina – para esse paciente já submetido a diversos procedimentos invasivos como o uso de vasoconstritor, uso de corticoides e reposição de volume.
Em pacientes normais e saudáveis a I-FABP está presente tanto na urina quanto no sangue. Entretanto, pacientes com covid-19 com lesão intestinal têm a I-FABP aumentada, sugerindo lesão intestinal. Amostras da admissão, do sétimo e décimo quarto dias de internação, revelam que pacientes em estados críticos (UTI) e pacientes não sobreviventes apresentavam uma concentração urinária de I-FABP maior que pacientes em quadros mais brandos e que não necessitaram de admissão em UTI, bem como pacientes sobreviventes.
Os pesquisadores quantificaram a I-FABP na urina usando a técnica de Elisa – teste imunoenzimático que se baseia em reações antígeno-anticorpo – confirmando e validando o uso do biomarcador I-FABP como um fator preditivo para prognóstico clínico da covid-29, uma necessidade de cuidados intensivos ou uma atenção especial àquele paciente, não o negligenciando. Além disso, mostraram que as lesões gastrointestinais podem ser um indicativo de uma gravidade maior dessa doença.
Outro elemento importante considerado no estudo foram os fatores de necrose tumoral alfa (TNF-α) – grupo de citocinas que possuem uma vasta gama de ações pró-inflamatórias – produzidos pelo sistema imunológico e cujo aumento, sabidamente, causa lesão no epitélio intestinal em outras patologias. Ainda, diversos estudos apontam que vários dos mediadores inflamatórios estão aumentados em pacientes infectados com o sars-cov-2, como TNF, o interferon-gama e interleucina-6 – considerada um fator de gravidade da doença tanto no plasma como na urina.
Perspectivas do uso do biomarcador como rotina
Os pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP identificaram que a lesão intestinal perdura pelo menos por 14 dias considerando o aumento significativamente crescente do biomarcador I-FABP em 48x na admissão, 74x no sétimo dia e 157x no décimo quarto dia, mesmo os sintomas estando presentes por curto período de tempo.
A estatística para estimar o fator preditivo dos biomarcadores mostra um melhor traçado para a I-FABP, em comparação com os demais mediadores inflamatórios e infecciosos, com nível de significância bastante expressivo comparando indivíduos sobreviventes e não sobreviventes na fase de admissão. Pacientes com concentração urinária acima de 6,89 ng I-FABP/mg creatinina tiveram um aumento na produção de interleucina-6 e proteína C-reativa, bem como maior tempo de internação.
Assim sendo, a pesquisa aponta que a lesão do epitélio intestinal perdura por até 14 dias durante a infecção pelo sars-cov-2 e está associada a uma resposta inflamatória aumentada. Portanto, a alta concentração urinária de I-FABP na fase admissional pode predizer o aparecimento de complicações com necessidade de ventilação mecânica, cuidados intensivos e tempo de internação prolongado.
Devido à grande quantidade de microrganismos presentes no intestino, uma lesão no epitélio pode expor a mucosa a riscos como translocação bacteriana do interior do intestino para a circulação sanguínea e, consequentemente, pode reativar a resposta inflamatória ou causar infecções bacterianas em órgãos distantes, como acontece em várias patologias. Esse é um risco aumentado para os pacientes covid-19 quando têm uma lesão muito extensa principalmente no intestino, além de interferir no processo de absorção ou mesmo motilidade intestinal.
Apesar de não ser uma técnica de grande acesso porque necessita de uma combinação de anticorpos e uso de reagentes que são específicos para aquela proteína, as técnicas imunoenzimáticas de rotina podem ser desenvolvidas em laboratórios de pesquisa e clínicos. A vantagem do uso de urina implica coleta sem grandes necessidades ou complexidade, basta apenas um coletor e a conservação em gelo, uma vez que a urina é bastante estável e não requer baixas temperaturas de armazenamento.
Dessa forma, a urina poderia ser coletada em áreas remotas do Brasil, como regiões do Amazonas e Pantanal, que têm áreas muito distantes da cidade. “Esse foi um motivo forte para adotarmos a dosagem urinária”, diz Rafael Simone Saia, docente do Departamento de Fisiologia da FMRP, autor da publicação. “Se pensarmos no contexto de uma pandemia na qual foram feitos investimentos maciços em testes e técnicas como o PCR para quantificação do sars-cov-2, e em todas as consequências que a pandemia trouxe, não acredito que a dosagem desse biomarcador seja algo impossível de ser feito como rotina.”
A pesquisa foi desenvolvida no Laboratório de Fisiopatologia Intestinal do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, sob responsabilidade do professor Rafael Simone Saia, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do HCRP (Faepa).
(*) Eliane Comoli, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP