Um casal, seu laboratório e os vírus da floresta à luz de velas
A pandemia de Covid-19 completa dois anos, com cinco variantes de preocupação do coronavírus e suas ondas de contágio, polarizações em torno das medidas não farmacológicas absolutamente necessárias a disseminação do vírus, o desenvolvimento em tempo recorde de vacinas, o alívio e esperança que elas trouxeram e a preocupação com novos recordes de infecção. Graças às vacinas, não estamos mais correndo sem sair do lugar. No entanto, enquanto alguns já anunciavam o fim da pandemia, acendeu-se um sinal vermelho ante a última variante do vírus. Juntamente com a pandemia de Covid-10 surgiu uma pandemia de desinformação com suas próprias ondas: contra as medidas não farmacológicas, a favor de falsos medicamentos, movimentos antivacinas e, agora, contra a vacinação de crianças. O antídoto, que nem sempre funciona e ao qual tantos parecem imunes, é a informação, que, não raro, virou uma infodemia, mas isso é outra história.
Aqui escrevo sobre um nicho da busca por informação: o resgate das histórias relacionadas com vírus. A história das vacinas e dos movimentos antivacina, dos diferentes vírus, da gripe espanhola ou sobre cientistas pioneiro(a)s. Esses resgates, que promovem reconhecimentos e reflexões sobre o que aprendemos ou desaprendemos, são sempre incompletos. A cada dia encontramos uma nova história que vale a pena ser contada. Essa que segue é uma delas, com várias dimensões, que começa com a vinda ao Brasil, em 1940, do casal de microbiologistas norte-americanos, Ottis e Calista Causey, e que por aqui ficaram por mais de 20 anos.
A história do casal em nosso país é ligada ao Instituto Evandro Chagas, que mereceria um texto a parte, tanto pela relevância no enfrentamento da atual pandemia, quanto por toda sua trajetória de mais de oito décadas zelando pela saúde na Amazônia. Foi lá, nesse instituto, que Ottis, em 1954, a convite da Fundação Rockfeller, instalou o Laboratório de Vírus de Belém, dirigindo uma equipe que contava com sua esposa e pesquisadores brasileiros. Em 1963, o casal deixou o Brasil e optou por continuar na Nigéria o trabalho desenvolvido na Amazônia. Era a época do lema “50 anos em cinco” e da construção da Belém-Brasília, contexto apresentado no artigo “Uma floresta cheia de vírus! Ciência e desenvolvimento nas fronteiras amazônicas”, do historiador Rômulo de Paula Andrade, com o qual me deparei por acaso e é a fonte inicial do que escrevo a seguir. Por sua vez, outra fonte importante do artigo que inspirou este, é a entrevista dada por Calista Causey para Robert Shope em 1979 e disponível no Youtube. O entrevistador conhecia bem a entrevistada, pois trabalharam juntos. Shope sucedeu Ottis na direção do laboratório em Belém. A entrevista tem trechos preciosos, como o que é destacado pelo historiador mencionado e que reproduzo aqui:
“Robert Shope: Então, os 8 mil dólares que a Fundação Rockefeller investiu foram bem gastos?
Calista Causey: Logo depois conseguimos mais ajuda financeira. Na verdade, nunca tivemos muitos problemas em nos sustentar em Belém. Mas não investimos dinheiro em máquinas como os outros laboratórios estavam fazendo. Estávamos lidando com um país cujos recursos científicos eram poucos. Não acreditávamos que precisávamos comprar ultracentrífugas ou coisas do tipo, porque em primeiro lugar elas não poderiam ser mantidas ou substituídas. Utilizamos ácido sulfúrico, pois não tínhamos gelo seco [...] uma simples bomba de vácuo não era possível. Tivemos que usar refrigerador de querosene, pois não tinha eletricidade todo o tempo. A voltagem era tão baixa que não era possível sustentar a eletricidade, assim, não tínhamos luz o suficiente para iluminar o laboratório. Nosso primeiro vírus de febre amarela foi isolado à luz de velas”.
Nesse contexto, a colaboração com outros centros para a identificação final de cada vírus era essencial e a rede se estendia do Rio de janeiro aos Estados Unidos. O casal publicou artigos científicos enviados de Belém ou, mais precisamente, de Ananindeua, cidade vizinha, onde ficava a primeira sede do Instituto Evandro Chagas, na Av. Almirante Barroso, que liga as duas localidades. Um desses artigos, o mais citado, foi publicado originalmente no “American Journal of Tropical Medicine and Hygiene”, em 1961, e reproduzido mais recentemente nas Memórias do Instituto Evandro Chagas. A ilustração abaixo mostra o início do artigo, cujo primeiro parágrafo é uma rápida apresentação do laboratório, e a primeira figura com o mapa da região de sua atuação. Os autores, além do casal Causey, são Otávio Maroja e Dulcimar Macedo, do Instituto Evandro Chagas. Eu só consegui identificar os nomes por meio de um artigo histórico de Amélia Paes Andrade Travassos da Rosa, a Amélia, carinhosamente mencionada por Calista Causey a Robert Shope, que também trabalhou com ela. Amélia, então uma jovem técnica de laboratório, seguiu como pesquisadora no Instituto Evandro Chagas por 40 anos, até ir para a Universidade do Texas onde continuou suas pesquisas até seu falecimento, em 2017.
Além da parceria com a Fundação Rockfeller que, apesar do sucesso, encerrou-se em 1971, outras se estabeleceram. Com isso, a pesquisa de arbovírus (transmitidos por artrópodes, como os insetos) na Amazônia continuou. A primeira foi com a SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), no início 1954. Em 1961 veio a associação com o Instituto Oswaldo Cruz em função do crescente problema de arboviroses na Belém-Brasília: postos de coleta se estabeleceram ao longo de 500 quilômetros da estrada! O trabalho do Laboratório de Vírus de Belém, não mais com esse nome, agora Instituto Evandro Chagas, continuou. Segundo Robert Shope, foi uma das “maiores buscas de vírus de todos os tempos”. De acordo com fontes publicadas, entre 1954 e 1985, foram identificados 141 tipos de arbovírus, a maioria desconhecida da ciência até aquele momento. Parece ser um recorde mundial para uma instituição de pesquisa.
Detalhes emocionantes sobre o trabalho do laboratório e seus pesquisadores, bem como sobre, por exemplo, a contenção da malária através da aplicação de sal cloroquinado na alimentação (e a prática de mercado negro do composto) são descritos pelo historiador Rômulo de Paula Andrade no seu artigo. A história chama a atenção por diferentes aspectos. Primeiro por não haver muitos registros dela: a busca por “Laboratório de Vírus de Belém” no Google tem resultados rarefeitos, fontes sobre Ottis Causey são inexistentes fora das bases de dados bibliográficos, onde seus artigos científicos podem ser rastreados. Temos a entrevista com Calista disponível no Youtube, mas, além disso, apenas um obituário. As poucas informações estão veladas em alguns poucos artigos e portais acadêmicos. Assim, vale a pena reproduzir abaixo uma foto do casal.
Um segundo aspecto é a surpresa com a qualidade e abrangência de um trabalho iniciado há mais de 60 anos, com recursos limitados e em condições inóspitas. Por fim, a atenção e consciência na época do impacto de mudanças ambientais (como as advindas com a construção da Belém-Brasília) na propagação de viroses, várias delas preocupantes e desconhecidas até o surgimento do problema. Lá em Ananindeua já se sabia das coisas que muitos esqueceram depois.
(*) Peter Schulz é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp.
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