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Que fazer das emoções na escola?

Ana Laura Godinho Lima (*) | 08/12/2021 08:30

Nos últimos dois anos, eu fui chamada três vezes a me pronunciar sobre as competências socioemocionais, um indício de que esse tema encontra-se em evidência. Neste texto, retomo algumas reflexões realizadas nessas oportunidades.

Da primeira vez, tratava-se de avaliar a dissertação de mestrado Efeitos de um programa para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais em professores, defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo. Recebi esse convite com uma certa má vontade, embora tenha aceitado participar. Por que a má vontade inicial, que eu inclusive confessei no dia do exame, logo no início da minha arguição? Embora esteja relacionado às disciplinas de psicologia pelas quais eu sou responsável na Faculdade de Educação, esse tema não é a minha especialidade e eu não estava especialmente interessada em me aprofundar nele, considerava que a emergência das competências socioemocionais no discurso educacional correspondia a mais uma tentativa de normalização dos comportamentos. E a perspectiva assumida pelo trabalho sugeria uma adesão ao discurso das competências socioemocionais, enquanto eu estaria mais inclinada a realizar a sua crítica.

Uma vez que aceitei participar – e consciente da minha resistência inicial –, evidentemente procurei maneiras de encontrar valor no trabalho realizado. Um convite para uma banca é uma responsabilidade, aquele convite expressava a confiança da pesquisadora e da sua orientadora em meu trabalho, eu não podia simplesmente derramar sobre elas a minha má vontade. E, como o trabalho estava muito bem feito, não foi difícil valorizar a pesquisa realizada. Na verdade, eu acabei revendo a minha posição inicial, se não em relação ao tema, ao menos em relação ao trabalho realizado por Alcione Moreira Marques, autora da dissertação. Eu afirmei com sinceridade que ela se propôs a investigar uma questão importante e lembrei que naquela semana – foi em 2019 – o jornal O Estado de S. Paulo publicara uma notícia sobre a inclusão da síndrome de Burnout na CID – Classificação Internacional de Doenças pela Organização Mundial da Saúde. A notícia dizia: “Segundo o Ministério da Saúde, a síndrome é comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas, dentre outros”, sugerindo que a profissão docente é estressante.

Embora atribuísse importância ao desenvolvimento das habilidades socioemocionais entre os professores, a pesquisadora admitia que contribuir para a formação dessas habilidades era apenas uma parte da solução dos problemas que se enfrenta no dia a dia das escolas públicas. Reconhecia que os professores não são estressados porque são incompetentes para lidar com as próprias emoções, embora possam ter dificuldades em relação a isso. Observava que eles e elas frequentemente têm muitas boas razões para se sentirem estressados, frustrados, ansiosos, com medo, deprimidos. Razões que em grande medida os ultrapassam, porque dizem respeito à gestão do sistema de ensino, às condições de trabalho e às dificuldades enfrentadas pelos alunos em seu cotidiano, quase sempre relacionadas às profundas desigualdades que caracterizam o País, entre outras. Em sua dissertação, o relato das condições materiais da escola e das situações observadas em seu dia a dia correspondia muito ao que eu me habituei a ler nos relatórios de estágio dos meus alunos da licenciatura, na parte que caracterizava o cotidiano da escola pública.

Como parte de sua pesquisa, a autora propôs um trabalho de intervenção na escola relativamente simples: uma sequência de dez encontros com professores para realizar um conjunto de atividades voltadas para o diálogo sobre as próprias emoções e seus efeitos no trabalho. Ao fazê-lo, ela criou na escola um ambiente propício a que o sofrimento e os problemas identificados pudessem ser objeto de reflexão conjunta daquele grupo. O que ela se dispôs a fazer é relativamente simples, mas não é fácil e não é pouco, embora também não possa ser considerado como medida suficiente para a superação das dificuldades. Essa simples intervenção produziu efeitos positivos, segundo os participantes.

Em minha arguição, observei que a conclusão do trabalho aproximava-se daquela a que chegaram, já há algumas décadas, os pesquisadores alinhados à psicologia escolar de vertente crítica, a qual se propõe a afastar o psicólogo em atuação nas escolas da condição de especialista que examina o aluno para diagnosticar deficiências ou distúrbios e, em vez disso, busca criar na escola um espaço como esse que ela havia criado, no qual os profissionais da escola podem pensar juntos sobre os próprios problemas para se apoiar mutuamente e criar alternativas para lidar com as dificuldades vividas no dia a dia do trabalho com as crianças. Ao mesmo tempo, a pesquisa realizada por Alcione Marques é inovadora ao incidir sobre a expressão das emoções dos professores em seu ambiente de trabalho, sem pretender avaliá-los sobre sua capacidade maior ou menor de gerir as próprias emoções ou treiná-los de modo a torná-los mais capazes de exercer o autocontrole. Em vez disso, ela tornou possível reconhecer as emoções dos docentes e os seus efeitos no trabalho e também observar como as condições do ambiente de trabalho afetavam a sua disposição emocional.

A segunda oportunidade em que eu fui convidada a me pronunciar sobre esse tema foi em uma entrevista para o jornal da USP junho deste ano, realizada pelo jornalista André Derviche. Revisitando as anotações que fiz para me preparar para essa atividade, observo que a minha principal preocupação foi a de problematizar as ideias de que as escolas não desenvolvem competências socioemocionais dos alunos, os professores não têm preparo para isso e é preciso criar uma legislação, um currículo e um programa e treinamento na escola para que essa necessidade passe a ser atendida.

Na terceira vez, eu deveria preparar a minha participação em um debate sobre o tema na III Semana da Licenciatura do Instituto de Psicologia e então fiz uma breve revisão da literatura disponível sobre o tema, com vistas a compreender melhor a controvérsia que está posta no campo da educação e da psicologia acerca desse tema. Para isso, selecionei um conjunto de cinco artigos acadêmicos publicados desde 2015, um capítulo de livro e mais a dissertação já mencionada, os quais se situam dos dois lados da discussão sobre o valor de programas dedicados a desenvolver as competências socioemocionais. No que se segue, procurarei caracterizar brevemente os objetivos e conclusões desses textos para, em seguida, apresentar as minhas próprias considerações relativas à questão sobre o que fazer com as emoções na escola.

Um aspecto comum aos textos que eu pude ler, dos mais simpáticos aos programas de avaliação e desenvolvimento das competências socioemocionais na escola aos mais críticos, é a constatação de que a preocupação com essa questão na escola está em evidência em diversos países: Estados Unidos, Inglaterra, Finlândia, Coreia, Israel, Singapura, Austrália etc. Diversos programas governamentais foram formulados a partir da pressuposição de que o investimento em saúde mental é um dos mais lucrativos que o governo pode fazer, uma vez que melhora o desempenho das pessoas e reduz os custos com problemas causados pelas doenças mentais. Essa pressuposição é endossada pela Organização Mundial da Saúde, segundo a qual a saúde mental constitui atualmente “uma das maiores preocupações de saúde pública no mundo”.

Afirma-se ainda que o interesse pelo desenvolvimento das competências socioemocionais originou-se no campo econômico, tendo sido posteriormente apropriado pelo campo educacional, onde tem gerado polêmicas. Com o propósito de se avaliar as competências socioemocionais em ambientes como empresas e escolas, estabeleceu-se um conjunto de cinco fatores de personalidade designados como Big 5, que são os seguintes: extroversão, estabilidade emocional, amabilidade, conscienciosidade e abertura a experiências. Para avaliar as habilidades socioemocionais criou-se uma escala conhecida como SENNA, que corresponde à sigla para Social and Emotional or Non-Cognitive Nationwide Assessment. No Brasil, o Instituto Ayrton Senna encampou a defesa da avaliação das competências socioemocionais por meio dessa escala e criou seu próprio programa de desenvolvimento dessas competências e habilidades.

O artigo intitulado “Relações entre inteligência e competências socioemocionais em crianças e adolescentes”, de autoria de Tatiana Nakano, Isabella Moraes e Allan Oliveira, relata uma pesquisa realizada no Ceará com estudantes do terceiro e quinto anos do ensino fundamental, a qual pretendeu verificar se havia correlações positivas entre as competências socioemocionais e a inteligência. Seus resultados indicaram que sim. Ao demonstrar essa relação, de certa forma a pesquisa fortaleceu o argumento de um artigo crítico à avaliação das competências socioemocionais na escola como política pública, o qual questiona justamente a dissociação entre habilidades cognitivas e não cognitivas ou emocionais, como se fossem aspectos separados da personalidade.

Outro artigo comparou dois programas destinados ao desenvolvimento das competências socioemocionais em escolas, um dos Estados Unidos e outro da Inglaterra, considerando seus formatos e as pesquisas publicadas que procuraram avaliar os seus resultados. No texto, os pesquisadores descrevem o programa americano como mais padronizado e diretivo, enquanto o programa inglês é mais flexível e adaptável às diferenças entre as escolas, prevendo a possibilidade de aproveitar iniciativas já existentes nas escolas com vistas à promoção da saúde mental. Indicam ainda que há posições divergentes quanto às vantagens e às desvantagens de cada um dos formatos. Se, por um lado, o programa norte-americano, que traz atividades prontas a serem reproduzidas pelos professores, é considerado muito rígido, por outro lado, o programa inglês, ao não oferecer orientações mais claras, é criticado por deixar os professores perdidos e confusos sobre o que e como fazer. Ambos se dirigem à educação básica e têm em vista a formação dos professores para melhorar o bem-estar dos estudantes.

Ao realizar a revisão de diversas pesquisas sobre a eficácia e a efetividade de ambos os programas, os autores concluem que seus resultados são contraditórios, sendo que algumas pesquisas apontaram melhoras, enquanto outras não identificaram qualquer resultado positivo, existindo inclusive um estudo que identificou uma piora no autoconceito dos meninos após a participação no programa.

Considerando agora os textos que se dedicam abertamente à crítica dos programas relacionados às competências socioemocionais na escola, é importante a discussão realizada no artigo “O problema da avaliação das habilidades socioemocionais como política pública: explicitando controvérsias e argumentos“, de Ana Luiza Smolka, Adriana Laplane, Lavínia Magiolino e Débora Dainez. O trabalho questiona a pertinência de se adotar a escala SENNA para a avaliação das competências socioemocionais como política pública, tal como ocorreu no Rio de Janeiro, a partir de uma parceria com o Instituto Ayrton Senna e o apoio da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. Ao analisar o relatório do projeto realizado contesta a afirmação contida no texto de que as Big 5 sejam objeto de consenso no campo da psicologia e que sua relevância seja cientificamente comprovada. Recorre para isso a uma revisão da literatura sobre o tema da formação da personalidade a partir de teorias consagradas produzidas no século 22 para evidenciar a diversidade de perspectivas teóricas e modos de conceber e classificar os tipos de personalidade, o que se contrapõe à ideia de que haja um consenso ou uma firme sustentação teórica para os Big 5. Baseando-se também em revisão de literatura de diversas áreas – psicologia, antropologia, sociologia, biologia, e neurologia – questiona a suposição de que as competências socioemocionais sejam dissociáveis das competências cognitivas e discute também os riscos de se avaliar os estudantes tomando como norma atributos socialmente valorizados, tendo em vista a adaptação social e o sucesso econômico, em vista de sua consequência de estigmatizar as personalidades não conformes.

Outro texto escrito a partir de uma perspectiva crítica tem como título “Currículos socioemocionais, habilidades do século 21 e o investimento econômico na educação: as novas políticas curriculares em exame“, de Rodrigo Carvalho e Roberto Rafael Dias da Silva. A preocupação fundamental dos autores é evidenciar que os currículos socioemocionais correspondem a uma estratégia de governo que tem em vista objetivos econômicos: melhorar o desempenho e o ajustamento dos alunos à escola e favorecer a sua inserção no mercado de trabalho e a sua produtividade, assim como evitar problemas como a delinquência e a criminalidade e os gastos com a assistência social.

Os pesquisadores trazem exemplos de questões de avaliação da escala SENNA que os alunos devem responder, os quais evidenciam a orientação para a conformidade que a avaliação apresenta.

Roberto Rafael Dias da Silva escreveu também o capítulo “Inovações permanentes e desigualdades crescentes: elementos para a composição de uma teorização curricular crítica“, o qual retrata com riqueza de detalhes os discursos que sustentam o imperativo da inovação no campo educacional, em particular no currículo, os quais se configuram a partir de termos como entretenimento, protagonismo do estudante e formação de competências socioemocionais, relacionando tais elementos à emergência do que vem sendo designado como capitalismo artista e capitalismo emocional.

Considero que, apesar de ser bem-vinda a preocupação com a saúde mental dos alunos e dos professores, não surpreende que os resultados desses programas dedicados ao desenvolvimento de competências socioemocionais sejam duvidosos, quando não decepcionantes. É que em vez de se voltarem para uma interrogação sobre como melhorar as condições do ambiente escolar – os espaços, as rotinas, as exigências a que professores e alunos encontram-se submetidos, as interações entre as pessoas –, tudo isso com o objetivo de melhorar o bem estar-comum e apoiar as pessoas em sofrimento, essas intervenções consistem em propostas de treinamentos, os quais, quanto mais padronizados, mais artificiais, especialmente quando são implementados não pelos próprios professores, mas por técnicos que se preparam para uma intervenção padrão e, depois de aplicar uma sequência pré-programada de atividades, vão embora.

As questões que emergem da leitura dessa amostra da produção acadêmica contemporânea sobre o tema são: as competências socioemocionais são treináveis dessa maneira? Se não for esse o caso, o que fazer das emoções na escola? O que já tem sido feito e como pode ser aprimorado? Começando pela última questão, gostaria de encerrar a minha fala fazendo algumas ponderações, que retomam aspectos dos trabalhos já mencionados.

O fato de uma escola desconhecer as Big 5 ou a escala SENNA de avaliação das competências socioemocionais não significa que nada é feito nas escolas para desenvolvê-las ou que os professores não se interessem pelo bem-estar emocional de seus alunos ou que não saibam como ensiná-los a lidar com as dificuldades que apresentam para lidar com as próprias emoções, relacionar-se com os colegas e se organizarem para cumprir as suas tarefas e dedicar-se aos estudos. Sem dúvida há professores mais hábeis e menos hábeis para realizar esse trabalho, mas dizer que a escola se ocupa apenas dos conteúdos e das habilidades cognitivas dos estudantes não se sustenta de maneira alguma. Como bem evidenciam as pesquisas em história da educação, a escola tem sido há mais de um século uma instituição encarregada tanto da transmissão de um legado cultural quanto da civilização das crianças, o que envolve o autocontrole das emoções, assim como a sensibilidade para perceber as emoções dos outros, aprender a respeitar e a ser respeitado.

Mesmo que se considere que seria preciso dar mais atenção ao bem-estar emocional nas escolas, penso que seria preciso começar por reconhecer que, atualmente, muitas vezes as escolas já se dedicam a esse objetivo em diversas atividades, dentre as quais se poderia mencionar as rodas de conversa, as intervenções feitas pelos professores quando surgem conflitos entre as crianças, do ensino sobre o respeito aos colegas e funcionários da escola e as orientações cotidianas dos professores sobre como os alunos devem organizar seu tempo de estudo, cuidar dos seus materiais, estudar diariamente para não ficarem sobrecarregados e aflitos na época das avaliações etc.

Seria preciso considerar ainda que a valorização das competências socioemocionais como parte das habilidades necessárias ao século 21, acompanhada da proposta de programas para o desenvolvimento das competências socioemocionais na escola, ao ser apresentada como um diferencial na educação dos estudantes, talvez especialmente nas escolas particulares, pode produzir como resultado uma outra modalidade de competição na escola, com todas as consequências já conhecidas: aumento da pressão sobre os alunos para que desenvolvam o mais rapidamente possível e ao máximo essas competências, estigmatização daqueles que não se mostram desde cedo hábeis em demonstrar essas competências e criação de formas de recuperação e tratamento, medicamentoso inclusive, para os considerados “deficientes” nesses atributos.

Programas com esse objetivo ainda produziriam o aumento da pressão sobre os professores, os quais também passariam a ser avaliados em função da sua capacidade de cultivar em si próprios as competências socioemocionais, bem como de promover tais competências em seus alunos. Acrescente-se a isso o risco muito provável dessa preocupação distrair a sua atenção do ensino dos conteúdos culturais que permitiriam desenvolver simultaneamente as habilidades cognitivas e emocionais.

A questão sobre se o ensino dos conteúdos culturais e dos procedimentos intelectuais que permitem a sua apropriação deveria ser secundarizado em relação a um trabalho que prioriza o desenvolvimento das Big 5 precisaria ao menos ser muito bem ponderada, em vez de simplesmente assumida como uma exigência evidente em vista das habilidades necessárias para o século 21.
Esses programas podem parecer bons investimentos: são econômicos e replicáveis em larga escala, permitem obter dados quantitativos e comparáveis, como o quociente intelectual (Q.I.) Mas, se o próprio instrumento é controverso, mal concebido, então tende a ser um desperdício de dinheiro, tempo e energia. Na melhor das hipóteses, a implementação desses programas serviria apenas para se confirmar o que já se sabe. Na pior das hipóteses, acabariam servindo para desqualificar os professores, sempre que parecessem não atender às expectativas estabelecidas, além de confundi-los e sobrecarregá-los com novas exigências e ainda submetê-los a cursos padronizados de qualidade muito discutível. Muito provavelmente seriam empregados como mais um instrumento para desqualificar também os alunos que se afastam da norma e encaminhá-los para programas de recuperação ou tratamento médico. Isso tudo sem que se prestasse a necessária atenção às condições de vida e de trabalho que poderiam explicar as razões dos sofrimentos manifestados na escola.

A própria eleição das Big 5 mereceria um exame mais detido, tendo-se em vista que representam uma escolha feita a partir de critérios que parecem expressar os valores da cultura empresarial norte-americana. Esses fatores estabelecem de modo um tanto arbitrário a valorização de certos traços de personalidade, enquanto desvalorizam outros que também poderiam ser considerados enriquecedores em um grupo de pessoas e para a sociedade. Se extroversão é uma competência socioemocional, então a introversão deve ser considerada como uma incompetência e as pessoas que apresentam esse traço de personalidade deveriam ser corrigidas ou tratadas? Será que a abertura a novas experiências é necessariamente superior à disposição a se concentrar e se aprofundar em um campo específico de experiências, mesmo que saibamos que as artes e outras atividades humanas dependem de uma dedicação obstinada a um campo bem delimitado de experiências? É necessariamente melhor estar disposto a experimentar de tudo, fazer de tudo um pouco do que ir fundo em um tipo específico de atividade, de experiência? Por que deveríamos desqualificar uma pessoa introvertida, que prefere trabalhar sozinha e em silêncio se ela evidencia um alto grau de concentração em um tipo de atividade que a apaixona? Ela não teria uma contribuição valiosa a oferecer à sociedade simplesmente sendo quem é, profundamente dedicada às atividades de que gosta? Por que deveríamos pretender tratá-la, corrigi-la?

Na perspectiva das Big 5, um monge, por exemplo, possivelmente seria considerado como incompetente emocional, um desadaptado. Provavelmente a maioria dos artistas e intelectuais também, de modo que os programas que se fundamentam nas Big 5 parecem ter como objetivo desenvolver as competências socioemocionais necessárias ao bom funcionário. O propósito da escola, contudo, não é formar funcionários bem adaptados às exigências do emprego, mas educar pessoas.

Mesmo que as pessoas precisem, em alguma medida, adaptar-se às exigências sociais, até mesmo em muitos casos às exigências de um emprego, como professores desejamos que nossos alunos também sejam capazes de desafiar as normas sociais tendo em vista transformar o mundo e o mercado de trabalho, de questionar o que lhes parece injusto e prejudicial. Que se tornem capazes de recusar se submeterem a exigências sem cabimento, que se recusem a serem desrespeitados, explorados.

Quanto às emoções vividas na escola, em vez de programas de desenvolvimento das competências socioemocionais, talvez fosse melhor para o bem-estar e o desenvolvimento emocional de professores e estudantes que se assegurasse tempo e espaço na escola para dialogar sobre as próprias emoções em um ambiente seguro, inclusive sobre as emoções perturbadoras, oferecendo-se a possibilidade de reconhecê-las e aceitá-las como parte da condição humana, mas também perceber os seus efeitos e aprender a lidar com eles.

Eu gostaria de terminar lembrando o exemplo do professor paquistanês que é pai de Malala Yousafzai, Prêmio Nobel da Paz e ativista pelo direito à educação. Ele não precisou ser treinado em nenhum programa de desenvolvimento de competências socioemocionais para fortalecer a capacidade de sua filha de lidar com as próprias emoções. Provavelmente ele desconhecia as Big 5 e o vocabulário que constitui a escala SENNA. Em vez desse conhecimento técnico, bastou-lhe a convicção do valor da escola para a formação de Malala.

(*)  Ana Laura Godinho Lima é professora da Faculdade de Educação da USP.

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