Quanto mais reservatório, mais chuva
Mais de 80% da matriz elétrica brasileira é composta de fontes renováveis, sendo uma das melhores do mundo na comparação com outros países no quesito sustentabilidade ambiental. Uma das características mais marcantes dessa matriz é a majoritária participação das usinas hidroelétricas (UHEs), superior a 60%.
No entanto, essa participação está se reduzindo em termos percentuais basicamente por dois fatores. O primeiro é de ordem legal, com a imposição de uma legislação ambiental muito restritiva e que torna o risco dos investimentos muito elevado. O segundo é de ordem geográfica, tendo em vista que a maioria do potencial hídrico está localizada na região da Amazônia, onde prevalecem terrenos planos e muitas áreas de proteção ambiental e indígenas, recaindo-se no primeiro fator restritivo.
Mesmo com a impossibilidade de construir novas UHEs, há uma variável importante e estratégica para o setor elétrico, o meio ambiente e os agronegócios: os reservatórios existentes e vinculados diretamente às UHEs construídas a partir dos anos de 1940, em ciclo iniciado pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
Para se ter uma dimensão geográfica dos reservatórios existentes, as áreas inundadas cobrem cerca de 40 mil km2, o equivalente à área da Suíça. O estado de São Paulo tem 21 grandes reservatórios, com uma área inundada total de 8.766 km2, o que representa 3,53% do seu território.
Do ponto de vista específico do sistema elétrico, a energia armazenada pelos reservatórios tem um valor econômico muito grande e crescente, grosso modo, por dois motivos: possibilita o suprimento de energia ao longo do ano, notadamente no período seco (de abril a outubro); e permite a realização de ajustes em tempo real, frente à intermitência das novas e ultracompetitivas fontes renováveis (eólica e solar) que estão ganhando maior participação na matriz elétrica.
Destaca-se que mais de 70% da capacidade de armazenamento de energia hidrelétrica do Brasil está localizada nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Durante uma estiagem nessas regiões, os reservatórios esvaziam e o país como um todo precisa aumentar a geração termoelétrica, elevando os preços da eletricidade (bandeiras tarifárias no mercado cativo), incentivar a redução da demanda de eletricidade e até implementar políticas de racionamento de consumo, como ocorreu em 2001 com a crise do apagão.
Feitas essas considerações de enquadramento temático, o objetivo central deste artigo é analisar duas outras externalidades tão ou mais importantes dos reservatórios e que transcendem o sistema e o setor elétrico: os impactos no clima regional e a umidade do solo das bacias hidrográficas onde estão localizadas as UHEs e seus respectivos reservatórios.
Durante o período chuvoso na Região Sudeste do Brasil (de novembro a março), a umidade média é de cerca de 70%, com baixa velocidade média dos ventos. Nesse contexto climático, a evaporação é baixa, mas a evaporação adicional contribui para aumentar a precipitação regional, o que provoca o aumento do fluxo dos rios, denominado energia natural afluente (ENA), o que possibilita a geração de energia elétrica. Além disso, tradicionalmente, com o aumento da precipitação, há a elevação do nível dos reservatórios, pois o volume da ENA é maior do que o do consumo de energia elétrica, sendo assim possível aumentar o estoque de energia disponível (conceito de Energia Armazenada) para ser utilizado no período seco (de abril a outubro).
Na posição e situação de maior volume de energia armazenada, a área inundada e a umidade do solo ao redor do reservatório também aumentam. Como consequência, há uma elevação das taxas de evaporação, o que provoca o aumento da umidade do ar e reduz a temperatura do clima regional. Assim, a atmosfera fica mais úmida e fria e, quando um sistema de clima quente e úmido atinge as áreas onde estão localizados as bacias hidrográficas e os reservatórios, a chance de precipitação aumenta.
Por outro lado, quando os reservatórios das UHEs estão em níveis críticos, a área inundada e a umidade do solo ao redor são mais baixas. Esse status determina uma redução das taxas de evaporação, o que diminui a umidade do ar e provoca o aumento da temperatura do clima regional e, consequentemente, do consumo de energia elétrica, por exemplo pelo uso intenso dos sistemas de refrigeração de ar. Com uma atmosfera quente e menos úmida, quando uma frente quente e úmida atinge esses reservatórios, as chances de precipitação diminuem.
Dessa forma, com base nesse simples e didático exemplo, os reservatórios atuam como o núcleo de um círculo virtuoso: mais chuvas, mais energia armazenada, mais umidade e temperaturas mais amenas, trazendo benefícios para outros setores.
Nesse contexto analítico simplificado, mas consistente, duas questões relevantes, entre tantas outras, colocam-se para a política e o planejamento energético brasileiro em relação aos reservatórios: como viabilizar a operação do sistema elétrico para preservar os reservatórios, a fim de que o círculo virtuoso se mantenha ativo, e como ampliar a capacidade dos reservatórios e contribuir para círculos virtuosos mais intensos.
No que diz respeito à primeira questão, a alternativa é a ampliação das usinas térmicas a gás natural para a produção de mais energia elétrica e a preservação do nível dos reservatórios. Essa estratégia contribuirá, de forma decisiva, para a estruturação e consolidação de um novo mercado de gás, tendo como fonte de fornecimento o potencial de exploração vinculado ao pré-sal.
A segunda questão é das usinas hidroelétricas reversíveis. Não se trata de construir novas usinas, mas de analisar as características técnicas das mais de mil UHEs que o Brasil tem em funcionamento e propor novas modelagens técnicas e novos modelos de negócios apoiados em inovações regulatórias, mediante leilões específicos, com impactos ambientais reduzidos.
Como nota final, e em face do aqui exposto, fica claro que os reservatórios das UHEs do Brasil possuem um papel de extrema importância – que transcende o setor elétrico, sendo um elemento positivo e diferenciador do país em relação ao resto do mundo – e que certamente está no horizonte analítico e estratégico da política energética brasileira.
(*) Julian David Hunt é professor visitante do PPG em Engenharia Mecânica UFRGS, Natália Assis Brasil Weber é aluna de doutorado no PPG em Engenharia Mecânica da UFRGS e Paulo Smith Schneider é professor do PPG em Engenharia Mecânica da UFRGS.