Quem tem medo do ChatGPT?
Recentemente eu fiz alguns experimentos com o ChatGPT, essa ferramenta de inteligência artificial (i.a.) que vem causando controvérsias quanto à sua funcionalidade para as diversas profissões, dada a sua fase inicial de abertura ao público e, digamos, à pouca confiabilidade de sua base de dados, que tende a conclusões por vezes enviesadas.
Eu ri de algumas respostas ininteligíveis a questões jurídicas difíceis. Recentemente eu li que o chatGPT foi capaz de ser aprovado na 1ª fase da OAB no Brasil e na prova da ordem nos EUA; que, na Colômbia, um juiz usou a ferramenta para redigir uma sentença em um caso sobre o direito à saúde de uma criança autista; e que, na Inglaterra, o escritório Allen and Overy anunciou que a mesma ferramenta vai redigir contratos.
Eu ri de novo, mas um riso já meio amarelado. Subitamente envelheci como se segurasse em negação uma Barsa em frente ao Google, à Wikipedia; como se acordasse de um coma profundo em uma Alemanha unificada sendo impedido de tomar conhecimento da queda do Muro de Berlim, como a protagonista de “Adeus, Lenin”.
Eu me senti um ser humano obsoleto: por um segundo me vi como uma espécie de David Letterman ironizando essa “coisa de internet” ao questionar, em 1995, um jovem Bill Gates sobre qual a vantagem daquele advento informático, até então desconhecido do entrevistador, em relação ao rádio ou à televisão, em um vídeo viral que (por motivos óbvios) envelheceu mal.
Sim, a i.a. chegou, inteligentemente, para contribuir com a eficiência do Sistema de Justiça, mas evidentemente “é importante que sejam observados procedimentos como conformidade, explicabilidade (explainability) e responsabilização ou prestação de contas (accountability)”.
Com o objetivo de implementar as metas de desenvolvimento sustentável ODS 16 da Agenda 2030 das Nações Unidas – referentes à promoção de sociedades pacíficas e inclusivas com acesso à Justiça para todos e com instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis –, o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Poder Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ-FGV), sob a coordenação do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luís Felipe Salomão, iniciou, em 2019, o levantamento inédito “Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da Inteligência Artificial”, que resultou no “Relatório de Inteligência Artificial” de 2022, um dos mais completos pesquisas já realizados sobre o assunto no Brasil após a publicação da 2ª edição do estudo.
Não somos um robô (por ora): a grande maioria dos projetos tem utilizado a infraestrutura local do próprio tribunal para o armazenamento dos dados utilizados ou analisados, bem como as equipes são majoritariamente (em torno de 91% dos casos) formadas por pessoas internas dos órgãos judiciários (em vez da opção por equipes externas ou mistas), “o que demonstra o trabalho que vem sendo feito pelos servidores dos tribunais” – palavras da juíza federal Caroline Tauk, também coordenadora do projeto, que também destacou não haver “nenhum projeto de juiz-robô ou nada que se aproxime disso”.
Ainda, 83% dos projetos indicaram que os resultados obtidos pela solução implantada passam por algum tipo de validação humana. A maioria dos projetos em produção atualmente atenderam às expectativas iniciais (60%) – o que indica que em relevantes 40% das iniciativas não foram atendidas as hipóteses que levaram à pesquisa da aplicabilidade da i.a.
O Laboratório de Inovação do TRF da 3ª Região tem feito um trabalho notável no estímulo a servidores e juízes federais para a produção de soluções viáveis para questões relacionadas a serviços, tecnologia e processos de trabalho, envolvendo ou não a utilização da inteligência artificial para tanto. O Inovafest, aliás, é um evento realizado anualmente para premiar as melhores iniciativas no âmbito da 3ª Região. A direção do foro da JFMS criou, em janeiro de 2023, o Laboratório de Inovação da SJMS, convidando os servidores e magistrados federais do estado a colaborarem nesse projeto de design thinking aplicado ao serviço público federal.
Desde 2020 o CNJ mantém o “Sinapses”, plataforma nacional de modelos de IA, onde ficam disponibilizados modelos para uso compartilhado dos tribunais, como uma espécie de hub de “inovação aberta”. Esse projeto foi criado a partir da regulamentação à LGPD feita pela Resolução CNJ 332 de 21/08/2020, que trata da ética, da transparência e da governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário.
O próprio Conselho realiza frequentemente estudos para acompanhar a evolução da utilização das tecnologias no sistema de justiça brasileiro: o Justiça 4.0 é uma parceria entre o CNJ, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o Conselho da Justiça Federal (CJF), A existência de 111 projetos em andamento nos tribunais, o que representa um crescimento de 171% em relação ao levantamento realizado em 2021, quando haviam sido informados apenas 41 projetos.
Como evitar, então, essa obsolescência humana programada? Como não nos sentirmos como david lettermans do serviço público frente ao advento da internet? As chamadas “tecnologias de propósito geral” – tais como a internet, as ferramentas de busca e agora a inteligência artificial – devem ser direcionadas para operarem tarefas que impliquem repetição e força, enquanto os seres humanos devem ser capazes de desenvolver as chamadas soft skills, habilidades como as necessárias nas artes, na música, nos esportes, nas atividades sociais que demandem empatia, que nos diferem em essência das possíveis aprendizagens de máquina (machine learning).
Assim deve ser também no sistema de justiça, em que os membros e servidores públicos não serão substituídos totalmente por essa “coisa de i.a.”, mas dela não poderão prescindir futuramente sob o risco de autossabotagem profissional – com graves prejuízos ao interesse público do jurisdicionado.
(*) Bruno Ávila Fontoura Kronka é Técnico Judiciário na JFMS, mestre em Direito e professor de Direito Constitucional e Administrativo.