Tinta na tela cultural de MS
Não sou um expert em arte e cultura, mas nos anos 80, após a divisão, participei entusiasticamente da busca por novos traços da nossa identidade cultural. Isso me permite emitir opiniões sobre esse tema.
Quando, em meio a uma grave crise climática, de valores e de modelo social, e quando a população encontra-se submetida a uma espécie de confinamento em telas tecnológicas, certa distorção e manipulação da realidade se inclui neste perigoso panorama local e global. Neste sentido, resta ao ancestral papel das artes, com lastro em suas culturas próprias, caminhar ao lado do seu eterno público: o cidadão comum. É uma parceria inesgotável, tal qual a criatividade da arte e dos seus artistas.
A arte, em suas diferentes formas de expressão e de manifestação de olhares sobre a realidade do mundo, auxiliam as pessoas em três aspectos.: Preservar a sensibilidade, o senso estético e a capacidade crítica. A cultura nos proporciona, particularmente, a sensação de pertencimento ao meio em que vivemos, pois suas funções estão intimamente relacionadas à dinâmica histórico-social de dada sociedade, seja primitiva ou cosmopolita. Não deixa de ser uma porção sensível, buscando o aprimoramento do aspecto humano da civilização. Nesse sentido, todas as modalidades de arte são parte dessa busca e a cultura vigente é a legitimação democrática dos valores, usos e costumes. Quanto mais presente e participativa é a cultura, mais coeso é o tecido social, com menor índice de violência. Quanto mais impactante é o trabalho do artista, em sua capacidade de empatia com seu meio social, mais forte e perene será seu trabalho pessoal.
Iluminismo, Renascimento e Contracultura foram movimentos socioculturais, que expressaram, em seus respectivos períodos, as insatisfações populares relacionadas aos seus respectivos retrocessos ou ânsia pelo novo, tendo nas artes, de maneira geral, o seu mais duradouro registro. No século 19, em plena 2ª Revolução Industrial, com novos arranjos metodológicos, como a compartimentação, a especialização e a produção em série, colocaram as artes em geral sob o peso de tais princípios metodológicos. Apesar de ser uma atividade quase independente em relação a outros setores da vida humana, não conseguiu evitar certa contaminação da nova cultura capitalista. Pode-se dizer que a sensibilidade humana, ficou confinada às artes, na perspectiva da sociedade de consumo. Mesmo assim, as duas poderiam se influenciar mutuamente, se as temáticas estivessem em sintonia. De todo modo, tal sintonia pode ajudar a avaliar o nível narcísico, o poder empático ou o absoluto comprometimento entre intenções artísticas e realidade social.
A um bom tempo, a arte e a cultura de Mato Grosso do Sul, se tornaram refém do utilitarismo que o modelo social de consumo vem empurrando sensibilidades da área a aderir a este modus operandi do capitalismo selvagem. É certo que os mecanismos da globalização acentuaram isso, mas também se deve à insegurança da identidade cultural regional, por pura ausência de uma política pública cultural contínua. Política de Estado, não de governos. Ainda persiste no imaginário popular a confusão do que seja arte e do que seja cultura.
Talvez a arte e a cultura de MS precisem, tal como a religiosidade pós-moderna, de certa teologia da libertação, de modo a repensar as funções sociais das artes no nosso tecido sóciocultural. Será que na democracia, inerente às artes, nasceu uma espécie de elite de artistas, que reivindicam a cultura como sinônimo de sua arte específica? Tomara que não. Vale lembrar que o artista cria, mas somente a cultura propaga.
Uma gestão politica nesta seara, é tudo que a arte e a cultura não precisam para recompor nossa identidade cultural fragilizada neste momento. Nossa Fundação de Cultura está alijada do processo sociocultural. Não do político. Tornou-se um instrumento de governo, não um instrumento de afirmação da identidade de um povo, usurpado em seus sonhos ou utopias de um mundo melhor, mais equânime e mais solidário. Coisas que só a sensibilidade é capaz de perceber.
Em tempos de crise climática, todas as manifestações artísticas e culturais podem e devem atuar como mais um instrumento terapêutico também, tanto pessoal como coletivamente. O tecido social está em frangalhos e as autoridades ou não percebem ou não querem perceber. Neste momento trágico, esta pode sim ser uma de suas funções.
(*) Gilberto Verardo– Psicólogo humanista.