Tributação, ideologia e desigualdade
Piketty, em seu livro Capital e Ideologia, aponta que a desigualdade não é um fato natural. Decorre de decisões econômicas, políticas e institucionais tomadas ao longo do processo histórico. Por que a desigualdade existe e por que ela é suportada, em especial por aqueles que mais pagam tributos? Ou, em outras palavras, qual é a ideologia utilizada ao longo do tempo para legitimar a desigualdade? O autor aponta pelo menos quatro regimes e narrativas utilizadas para legitimar a desigualdade, dentre as quais o Regime Tributário.
No Brasil, a difusão de conteúdos sobre tributação tem sido uma das formas utilizadas por aqueles que menos tributos pagam proporcionalmente para legitimar a desigualdade produzida pelo Sistema Tributário Brasileiro (STB). A forma utilizada tem sido a difusão de mitos sobre a tributação no Brasil.
O primeiro deles é que no Brasil a carga tributária é alta. Essa informação não é verdadeira, pois ela depende da faixa de renda do contribuinte. A carga tributária é o resultado da razão entre o montante de tributos pagos e a renda. Sobre esse tema, pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a carga tributária de contribuintes com renda mensal de até dois salários mínimos (SM) é de 48,8%, enquanto a de contribuintes com renda mensal superior a 30 SM é de 26,3%, ou seja, quase metade da carga dos mais pobres. Isso decorre da predominância de impostos que incidem sobre o consumo em detrimento da baixa tributação sobre a renda e o patrimônio no Brasil.
Assim, aqueles que difundem a narrativa da alta carga tributária escondem ou minimizam a baixa tributação sobre a renda e a propriedade no Brasil, tanto que a única proposta de Reforma Tributaria no Parlamento que incorpora propostas para a baixa tributação sobre renda e propriedade, a Emenda Substitutiva Global à PEC n.º 45/2019, não é divulgada pela mídia tradicional. Essa proposta foi concebida a partir de um amplo estudo, “A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas”, elaborado por mais de 40 especialistas, que apresenta um diagnóstico detalhado sobre cada imposto que compõe o STB.
A baixa tributação sobre a renda e o patrimônio é responsável, em parte, pela desigualdade no Brasil, uma das maiores do mundo. Enquanto nossa tributação sobre renda e patrimônio representa apenas 23% do total da arrecadação, nos EUA é 60%; na Dinamarca, 67%; e na média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 40%.
Quanto a renda é tributada? Comparando o Brasil com países da América Latina, enquanto nossa alíquota marginal mais alta no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) é de 27,5%, na Argentina é de 35% e no Chile, de 40%. A média nos países da OCDE é de 41%. Essa baixa tributação sobre as rendas mais altas no Brasil faz com que a arrecadação do IRPF represente apenas 2,5% do PIB, enquanto a média nos países da OCDE é de 8,5% do PIB.
Para agravar ainda mais a injustiça fiscal, a Lei n.º 9.249/1995, que isenta de IRPF a renda advinda de lucros e dividendos, ampliou a regressividade, pois contribuintes com renda mensal superior a 240 salários mínimos têm aproximadamente 70% de suas rendas isentas, pagando uma alíquota efetiva de IRPF semelhante a de contribuintes com renda mensal em torno de 5 SM, conforme demonstrado no artigo Alternativas à redução da regressividade do imposto de renda da pessoa física no Brasil.
A partir de renda mensal superior à faixa entre 30 e 40 SM , quanto maior for a renda da pessoa física, menor é a alíquota efetivamente paga. No mundo, apenas Brasil e Estônia adotam tal prática. Qual tem sido a ideologia desigualitária, usando a linguagem de Piketty, difundida pelos defensores da Lei de 1995? A bitributação. Essa narrativa, utilizada por aqueles que menos pagam IRPF, legitima a desigualdade provocada por essa lei, logo nesse imposto que é o mais adequado para a promoção da justiça fiscal, segundo a Teoria de Tributação Equitativa.
Outra narrativa desigualitária é a defesa intransigente do cumprimento de uma parte da Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF). A defesa é apenas em relação ao corte de gastos e aos mitos da austeridade, enquanto os artigos que tratam da receita (artigo 11) e da renúncia de receita (artigo 14) não são cumpridos, e, mesmo assim, os órgãos de controle e fiscalização aprovam as contas públicas do Chefe do Executivo e ainda contam com o apoio da mídia tradicional, que não noticia ou denuncia tal descumprimento, cujas receitas tributárias fazem falta para a oferta de serviços de saúde e educação públicas.
Em relação ao artigo 11 da LRF: por que os Órgãos de Fiscalização e Controle não configuram crime de responsabilidade fiscal o fato de a União não ter instituído desde 2000, ano de entrada em vigor da LRF, o Imposto sobre grandes fortunas?
Afinal, esse imposto é de competência da União, conforme inciso VII do artigo 153 da Carta Magna de 1988. E o artigo 11 da LRF define que é crime de responsabilidade fiscal quando não houver a “instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”.
Segundo artigo 14 da LRF, a renúncia pode ser concedida desde que não haja desequilíbrio nas contas públicas ou, havendo desequilíbrio, a renúncia “deve estar acompanhada de medidas de compensação, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição”. Além do descumprimento do artigo 14 da LRF, a renúncia (ou gasto tributário) não se subordina às regras do orçamento público e tampouco às regras do teto de gastos da Emenda Constitucional n.º 95/2016, em oposição aos gastos com saúde e educação, fundamentais à redução das desigualdades no Brasil, conforme aponta estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) publicado em 2015. Assim, aceitação do descumprimento da LRF em temas que tratam da renúncia em oposição aos artigos que impõem cortes de gastos é mais um exemplo de narrativas utilizadas para legitimar a desigualdade.
A forma como o tema da tributação vem sendo tratado pela maioria do Parlamento, pela mídia e por grupos econômicos que pagam proporcionalmente menos tributos está desconectada da realidade. A profunda crise que estamos vivendo exige – assim como fizeram os países na crise do pós-guerra – que se coloquem na agenda propostas que enfrentem a regressividade do STB, reduzam as desigualdades e ampliem a capacidade de financiamento do Estado social para enfrentar a crise econômica e social que se aprofunda.
Com este propósito, o Instituto Justiça Fiscal e outras instituições da sociedade civil elaboraram a Proposta intitulada Tributação sobre os Super-ricos com oito medidas que corrigem as injustiças do IRPF, fortalecem estados e municípios e oneram apenas os 0,3% mais ricos do país, possibilitando um acréscimo na arrecadação estimado em R$ 292 bilhões.
Por fim, essa é uma das alternativas necessárias para o plano de reconstrução que o momento atual exige. No entanto, nos resta um questionamento: qual é tamanho da atual crise e das desigualdades suportáveis que estabelecerão um limite às narrativas sobre o Sistema Tributário Brasileiro, historicamente difundidas para legitimar as desigualdades no Brasil?
(*) Rosa Angela Chieza é professora dos Programas de Pós-graduação em Economia Profissional/UFRGS e Política Social e Serviço Social/UFRGS.