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Um pouco da nossa história

Heitor Rodrigues Freire (*) | 15/09/2020 07:38

Minha família chegou em Campo Grande em 1947. Meu pai e minha mãe com seis filhos. Éramos egressos do Paraguai, morávamos em Pedro Juan Caballero, expulsos por questões políticas. Meu pai, Luiz Freire Benchetrit, comerciante dos mais prósperos da fronteira, se viu, de repente, despojado de tudo, ficando só com a roupa do corpo, tendo que emigrar para o Brasil para não ser morto.

Em Campo Grande, ele era obrigado a se apresentar regularmente no quartel da 9ª Região Militar como refugiado político. O que hoje muitas famílias sofrem no mundo todo, nós vivenciamos naquela época. Minha mãe, filha do homem mais rico da fronteira e esposa de um próspero comerciante, tinha ajudantes para todos os afazeres domésticos.  Quando chegamos em Campo Grande, de repente, ela se viu às voltas com a responsabilidade de alimentação e atendimento de seis filhos. O maior com sete anos e a menor com seis meses. Tendo que dar conta de tudo. E deu conta, sem reclamar.

Meu pai conseguiu alugar um espaço no Bar Bom Jardim para fritar pastéis e vender cigarros e charutos que o próprio Bom Jardim não vendia. Ele me chamou e disse: “Filho, preciso de você. Temos que trabalhar”. Eu, que até então era um menino mimado e muito paparicado, me vi na contingência de assumir um compromisso aos sete anos. Uma nova condição se impunha a todos nós. Entendi, aceitei, comecei a trabalhar e não parei nunca mais. Rapidamente, aprendi o português. Nada acontece por acaso.

No Bom Jardim, eu tinha uma bandeja pendurada no pescoço por uma espécie de talabarte, onde expunha meus produtos: cigarros, charutos e bilhetes de loteria. Lembro das marcas de cigarros, Elmo, Continental, Belmont e Ascott, cigarrilhas Talvis e charutos Suerdieck.  A cada momento, durante o pico de frequência, eu passava por todas as mesas oferecendo. Lembro de um cidadão que uma vez, contrariado pela minha constância, me disse: “Guri, toma aqui esta nota de 5 mil réis e NUNCA MAIS me ofereça nada”. Guardei o dinheiro e levei para o meu pai.

Quando não tinha movimento, eu saía pela rua 14 de Julho oferecendo bilhetes de loteria. Entrava em todos as lojas, seguindo até a Antônio Maria Coelho. Ia pela calçada da esquerda e voltava pela da direita. Um dia, ao entrar na Casa Murad, que ficava na esquina com a Maracaju, comecei a oferecer para as pessoas que ali se encontravam. Ofereci para uma senhora que estava de costas, e ao se virar, vi que era a minha mãe! Ela chorou e falou: “Mi hijito!”. Dei um beijo nela e segui em frente.

Do Bom Jardim fomos para o Mate Índio na Antônio Maria Coelho, ao lado do Cine Rialto. Depois para o Salão Cristal. E finalmente para o mercadinho, na rua 7 de setembro.

A herança que eu e meus irmãos recebemos do nosso pai foi o seu exemplo de homem íntegro, que nunca se deixou abater pelo infortúnio. Ele morreu em 1967, aos 64 anos

Vinte anos mais tarde, em 1987, eu fui visitar a Sociedade Miguel Couto dos Amigos do Estudante, acompanhando o professor Alcídio Pimentel, chanceler da Funlec que pretendia estabelecer um convênio entre as duas entidades. Fomos recebidos pela professora Oliva Enciso – diretora da Sociedade e uma pessoa das mais insignes da nossa história por sua dedicação, competência e idealismo, sempre voltada para a educação dos mais carentes –, mas infelizmente, nossa intenção não prosperou.

Quando nos despedíamos, a professora Oliva me disse: “Heitor, eu preciso te contar uma história do seu pai, que acho que você não conhece. Você sabia que ele doou uma área de 300 hectares para a nossa Sociedade para instalarmos uma escola agrícola? Essa área seria desmembrada da fazenda Formosa, que seu pai tinha comprado e que supostamente teria por volta de 2 mil hectares. Mas ao fazer a medição para separar os 300 hectares, viram que a área da fazenda tinha na realidade somente 1.200 hectares. Então eu agradeci, e disse a ele que nesse caso não precisava fazer a doação, que valia a sua intenção. Mas ele se manteve firme, e disse que sua palavra era uma só. E doou a área, conforme o combinado.”

Agradeci à professora Oliva. Eu realmente não sabia disso, minha mãe também nunca tinha me contado, e assim, 20 anos depois da morte do meu pai, eu recebi mais uma herança deixada por ele: seu exemplo de integridade, com um ensinamento fundamental: “O combinado não é caro.”


(*) Heitor Rodrigues Freire é corretor de imóveis e advogado

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