ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, DOMINGO  24    CAMPO GRANDE 26º

Artigos

Vendas online precisam ganhar eficiência tributária

Por Diogenes Mizumukai Rodrigues (*) | 08/10/2023 13:30

A crise bilionária das Lojas Americanas trouxe a público um problema estrutural que acomete o varejo brasileiro e põe em xeque o modelo de negócios adotado pelo segmento. Não há dúvidas de que, como líderes do setor alegam, o cenário macroeconômico do país justifica as agruras do segmento. Alta de juros, inflação, retração do poder de compra dos cidadãos, inadimplência e lentidão do mercado para reagir, em seu conjunto, tiveram grande impacto sobre a saúde financeira dos grupos tradicionais. Tudo isso agravado pela pandemia de Covid, que, a partir de 2020, além de abalar a estrutura das varejistas, mudou hábitos dos consumidores, que aderiram em massa às compras pela internet.

Esses argumentos justificam, mas não esgotam as razões que levaram ao encolhimento do setor, cujo valor de mercado caiu até 90% desde que a escalada de juros começou, em meados de 2021. Além da Americanas, essas variáveis afetaram Magalu, Via Varejo, Riachuelo, Renner, MadeiraMadeira, dentre outras. Números do Valor Data divulgados em janeiro deste ano, com base na análise do balanço de 48 empresas, revelam que o endividamento do setor varejista cresceu 176% entre 2021 e 2022, pressionado por empréstimos feitos pelas redes para bancar investimentos realizados entre 2015 e 2016.

Fugiram a essa curva redes que se organizam sob um modelo de negócios diferente daquele adotado pelo varejo tradicional, ancorado em lojas físicas. Mercado Livre e Shopee, principalmente, surfaram essa onda e alavancaram as vendas.

A participação do e-commerce no varejo nacional saltou de 5,8%, em 2019, para 20% em 2021, segundo dados do site especializado E-Commerce Brasil. As redes tradicionais do país não estavam preparadas para enfrentar a concorrência do mercado digital diante dessa velocidade de crescimento. Ao mesmo tempo em que precisavam focar no e-commerce, carregavam os pesados custos do varejo físico. A convivência entre despesas operacionais do modelo anterior e os investimentos necessários para enfrentar o comércio digital fez com que essas empresas tivessem um bom market share de vendas, mas com resultados financeiros muito ruins.

O que o Mercado Livre e a Shopee fizeram para seguir com bom desempenho no mercado? Temos peculiaridades importantes.

O Mercado Livre dominou, como nenhum outro varejo no Brasil, o modelo de cross border — em tradução livre, comércio de produtos além das fronteiras dos países —, o que lhe rendeu a maior eficiência tributária possível e garantiu ganhos expressivos nas margens de lucro. Com uma estrutura de marketplace, o Mercado Livre inseriu no mundo digital pequenos negócios, a exemplo de armarinhos da rua 25 de Março, em São Paulo. Colocou-os em situação de concorrência frente a frente com as grandes redes de varejo, só que com uma eficiência tributária incrível, porque essas pequenas lojas estão no Simples Nacional, enquanto as grandes varejistas seguem as obrigações tributárias ordinárias, bem mais onerosas.

Para dar uma ideia da eficiência tributária, tome-se como exemplo o Difal — diferença entre a alíquota interna e a interestadual do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). As empresas do Simples Nacional não pagam o Difal, que representa um impacto entre 4% e 12% dos encargos tributários para redes que adotam o 1P (comercializam os próprios produtos retidos em estoque). O Mercado Livre conseguiu colocar essas microempresas em suas vitrines e, assim, conquistar maior eficiência tributária, somada a uma logística extremamente eficaz para seus consumidores e com uma margem de lucro bem maior.

O Mercado Livre tem ainda mais uma vantagem: ao adotar o modelo cross border, ficou também com a margem de lucro de percentual referente à parcela tributária. Isso significa ganhos três a quatro vezes maiores que a margem de lucro das grandes varejistas que fazem 1P.

No caso da Shopee, o cenário muda um pouco. Existe uma lacuna legislativa tributária quando se fala de importação, e aí podemos incluir as varejistas chinesas que entraram no Brasil. Boa parte das importações vêm direto da China para o Brasil. A China estudou muito bem o mercado brasileiro para poder se estruturar e crescer internamente. Apoiou-se em um instituto chamada de minimis, criado pelo legislativo brasileiro pensando na pessoa que vive ou foi passear no exterior e quer trazer ou mandar um presente para alguém aqui no Brasil. É um benefício de pessoa física para pessoa física e o teto desse presente é de US$ 100.

A Shopee e as varejistas chinesas que entraram no Brasil se beneficiam dessa vantagem tributária de forma a não ter a incidência de qualquer tributo, uma vez que eles declaram que os valores enviados dos produtos estão abaixo desse teto do de minimis. Trata-se de um dispositivo legal explorado em benefício das plataformas de venda no varejo para elevar ao máximo sua eficiência tributária. Os chineses, portanto, fizeram a lição de casa.

É preciso também falar do case Havan, que cresceu muito nesse período, mesmo sendo quase que exclusivamente dedicada ao varejo físico. Por quê? Seu modelo é muito próximo ao norte-americano, em que você encontra a maior variedade possível de produtos em um mesmo espaço. Além disso, muitos desses produtos têm fabricação própria. Assim, a Havan acaba pegando duas etapas relevantes para a composição das margens de lucro no mercado, tanto a produção quanto a venda na ponta, o que lhe rendeu posição estratégica na liderança de desempenho das lojas físicas.

Além deste cenário mercadológico desafiador, o varejo passa por grandes dificuldades de alavancagem financeira. As estratégias adotas pelas grandes varejistas para impulsionar as finanças internas não têm agradado ao mercado, sendo hoje ativos pouco procurados na B3. Em sentido oposto ao que buscam, estão marcadas como ativos de risco.

Paralelamente, vemos que as empresas estrangeiras, há alguns anos, estão conquistando o mercado nacional e, ante à omissão das varejistas tradicionais, tiveram tempo de conhecer, aprimorar sua eficiência tributária e logística, o que lhes rendeu a confiança do mercado consumidor brasileiro.

É como diz o ditado: "jacaré que dorme vira bolsa de madame".

O tempo acabou. É preciso sair do transe, rever o modelo de negócios de forma rápida, ganhar eficiência tributária e, o principal, unir-se por uma legislação que torne iguais os diferentes, por meio, por exemplo, de uma câmara de compensação entre os encargos da cadeia produtiva brasileira e os ganhos fiscais garantidos no país às importações.

Um caminho possível seria a cobrança de IOF sobre os produtos estrangeiros que ingressarem no país, proposta que entrou em discussão no governo passado, mas não avançou. E, pela reação que se viu diante da iniciativa do ministro Fernando Haddad (Fazenda) de taxar esses produtos, com certeza não será um debate fácil. Mas é necessário sair do transe, sob pena de o varejo brasileiro passar de jacaré a bolsa.

(*) Diogenes Mizumukai Rodrigues é advogado tributarista, especializado em Direito Digital e Empresarial.

Nos siga no Google Notícias