Vestido na Cadeira
Estou voltando para o meu corpo. É assim que ando explicando os sinais que o corpo me dava e que eu não percebia. Agora sinto e atendo.
Quando subo os degraus para o segundo andar sempre começo a sentir o que está me incomodando e, que a rua, não me permitiu sentir. Já fiz xixi várias vezes na escada (nas gravidezes isso era rotina, mas tinha o perdão da maternidade...), entrando enquanto girava a chave na porta ou no corredor para o banheiro... parece que o corpo se liberta e sai da contenção, do controle... já abri sutiã na escada, botão da calça, tirei sapatos entre um degrau e outro. Mas sempre sob o controle moral que fui internalizando, sem nudez. Mas, de março de 2020 prá cá acho que o corpo coberto também está rebelado. Todas as roupas me causam “guniamento”, embora isso ainda esteja circunscrito às paredes internas do apto.
Eu já havia adotado andar descalça, calcinha e camiseta, short e sutiã em casa e geralmente tinha um vestido “de colocar por cima” em cima de uma das camas. Tipo um socorro prá atender porta, fazer lives, atender chamadas com câmera. Mas, depois da vivência solo em tempos de pandemia fui, aos poucos, trazendo o vestido prá sala e jogando no espaldar de alguma cadeira...
Morar sozinha tem umas benesses que só quem experimenta é que sabe. Tirar roupas e calçados mesmo em prédios que tem vizinhos é uma libertação que vai se fazendo aos poucos e é irreversível. Tem também a liberdade de não ter que combinar música com ninguém... ouve-se o que quer e na hora que quer... e eu adoro ser surpreendida pelas plataformas musicais, embora eu saiba que o tal do algoritmo fecha minhas possibilidades... a plataforma do youtube já me aponta cantantes latinos em espanhol... esse Maldonado quando compôs Volver, Volver estava quase que nem eu... louco!
“Este amor apasionado
Anda todo alborotado por volver
Voy camino a la locura
Y aunque todo me tortura, se querer”
Enquanto canto vou pensando nos corpos, especialmente o das mulheres. Foram sempre tão cobertos que o tirar a roupa tem parece que sempre tem a marca da sensualidade e, em alguns casos, do erotismo. Mesmo em situações bastantes corriqueiras é possível colocar uma trilha sonora e fazer de uma mera cena de trocar de blusas um ato de sedução e excitação sexual.
“Y volver, volver, volver
A tus brazos otra vez
Llegaré hasta donde estés
Yo se perder, yo se perder
Quiero volver, volver, volver”
A imaginação fértil tanto das mulheres como dos homens vai compondo uma trilha sonora que sai da mera necessidade de estar sem roupa para devaneios mil. Talvez por isso que assustava tanto a personagem Amorzinho, em Tieta, ficar de calcinha vermelha e sem saia enquanto bordava. Era uma curiosidade masculina sem fim e uma ação castradora da Perpétua que chegava à violência. E, a personagem que só queria bordar e crochetar com menos calor nas partes, passou ela própria a considerar seus desejos enquanto estava sem saia, especialmente quando ouvia pregação do pastor, expulsando demônio na rádia. A pergunta então seria: estar sem saia lhe excitou ou se excitou e ficou sem saia? Ou seria ambos movimentos integrantes da mesma libido? Foram os de fora tipo o Amintas e Tieta que lhe despertaram e libertaram a libido ou foi ela própria que foi se descobrindo em hormônio e desejos e... se sentindo?
Fato é que a nudez como erotizante construída independe do corpo posto em pele. A erotização normalizada, geralmente, a partir do desejo masculino, vai fazendo das mulheres reféns de coberturas de corpo, como se a nós coubesse a obrigação de frear os desejos incontroláveis dos homens. Cobrir o corpo para não trazer à tona a sanha do desejo violentador dos homens.
Mas, então, porque em muitas comunidades de povos originários continua sendo apenas corpos sexuados sem erotização? Talvez será porque a erotização não está presente? Porque ainda o capitalismo não tomou conta da sexualidade e não a dominou e transformou para o consumo? Será que é porque atividades sexuais estão menos contaminadas pelas relações de poder? Talvez também porque os streamings de filmes pornôs não chegaram até esses grupos?
Fato é que ao me perceber morando sozinha, sem vigilância de aptos vizinhos pelas janelas, com pouca ou nenhuma convivência presencial devido à pandemia, a possibilidade de o vestido ficar à espera da próxima movimentação externa tornou-se real. Mas ainda não se falava sobre isso nos grupos de mulheres. Só com uma confidência aqui ou ali... Conversar sobre nudez ainda fica restrito às confidências. Só sai prá rua quando vira produto, mercado...
Quando o meu vestido veio prá sala, perto da porta de entrada, inicialmente pensei na praticidade de vesti-lo a cada necessidade, coisa de rapidez... Então, o corpo nu se guardaria sob a veste rapidamente. Depois fui me acostumando tanto que ao chegar em casa já tirava as vestes no mesmo ritmo que os sapatos e/ou chinelos. Passei a ter o vestido da semana usado de vez em quando.
Estar assim, eu comigo mesma e meu corpo de 58 anos e todas as suas marcas, tornou-se um cotidiano que foi entranhando na normalidade. É um corpo que vive as inteirices e as contradições entre o reafirmar “meu corpo, meu território” das lutas e bandeiras feministas e, ao mesmo tempo senti-lo carregado pelos valores de mercado: quanto vale sua força de trabalho, sua capacidade de prazer de si e de outrem, que desejos e delícia me provêm e me mantêm viva? Quanto custa sua manutenção em alimentos, cremes, desodorante, sabonetes, água, descanso... todos os dias listo mais um custo para a manutenção do corpo vivo... esses dias lembrei do gel e do preservativo e ri... o SUS me fornece.
Eu deveria apostar também nos custos do pilates e da dança de salão, mas tive que deixar (embora eu sinta uma falta danada). Quando danço ao som de
“Y volver, volver, volver
A tus brazos otra vez
Llegaré hasta donde estés
Yo se perder, yo se perder
Quiero volver, volver, volver”
percebo o cansaço do sedentarismo que a pandemia só aumentou e, quando escolho o ritmo da dança sei que é para além do que o corpo pede. É comum eu começar como os bailes dos anos de 1980 quando haviam as sessões iniciais de bolero, depois samba, polca e rancheira e depois soltinho (sempre tinha Cely Campelo e o estúpido cupido)...
Agora em casa, hoje, por exemplo, comecei com o festival de Viña Del Mar e com Lucero... a atriz mexicana e cantante que mesmo em novelas que tem que chorar parece que ri... Lembro bem em Alborada, ela sofria muito e seguia linda...
“Nos dejamos hace tiempo
Pero se llegó el momento de perder
Tu tenías mucha razón
Le hago caso al corazón y me muero por volver”
Meu corpo gosta e responde quando volto prá ele...Enquanto vou lambuzando de hidratante o antes de vestir sutiã e calcinha (coloco nessa ordem prá superar o peso dos peitos), vou cantando, dançando e sentindo o que havia deixado prá trás quando me tornei uma máquina produtiva para o capital.
Olho para o vestido que serviu por uma semana para atender à porta e o jogo na máquina e lavar. Busco o próximo e penso se tem a tessitura gelada da seda ou o acolhimento do algodão puro, talvez alguma coisa de cetim... E, ao colocá-lo na cadeira espero a próxima demanda prá vestir. Não será para ninguém o admirar e nem tem obrigação de moda. Vai ser só para o prazer de senti-lo na pele. É meu corpo, meu território para servir a mim mesma!
Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada. A foto de hoje é da compa Nancy Angélica.