Vocabulário arreganhado: como se aprendem as palavras?
"Famigerado” é o título de um dos mais conhecidos contos do escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967). Na narrativa, um temido jagunço viaja seis léguas para descobrir o significado de um termo que havia sido usado para se referir a ele. Diante de um “doutor”, ele indaga: “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?”.
Sem desenvolver certa familiaridade com um vocábulo, é difícil apropriar-se completamente dele e, não raro, o falante guarda apenas uma impressão acústica da palavra – o que pode gerar, quando não desentendimentos, ao menos situações cômicas. Esse princípio, que inspira o conto de Guimarães, manifesta-se também em casos cotidianos. Imagine a cena: um repórter caminhando pela areia, com as calças dobradas para cima, narrando a rotina da praia. Tudo normal até que a apresentadora, do estúdio, comenta ao vivo: “Lá está ele, com as calças arreganhadas na areia!”. O que poderia ser uma simples observação acabou rendendo risadas e reflexões. Afinal, como assim arreganhadas? As calças dele estavam “escancaradas”, “abertas em demasia”? Não era o caso.
A frase, mesmo equivocada, pintou uma imagem tão absurda quanto divertida – perfeita para analisarmos como o falante constrói o vocabulário de que disporá em seu dia a dia. Talvez, nesse momento, tenha ficado claro que a âncora, ao que tudo indica, não tem muita experiência com calças arregaçadas – uma prática essencial para quem encara as andanças pela areia. Mas, o que tem a ver a vivência e o aprendizado de vocabulário?
Arregaçado x arreganhado: o poder do contexto
O deslize da apresentadora trouxe à tona dois verbos que, apesar de aparentemente próximos, têm significados bem distintos. Arregaçar é simples e prático: dobrar ou puxar algo para cima, como mangas ou a barra da calça, geralmente com um objetivo funcional – evitar sujeira, facilitar movimentos ou, no caso da praia, manter as roupas livres da areia e da água salgada. Já arreganhar tem outro significado: algo escancarado, exageradamente aberto, como uma boca ao bocejar ou rir de uma boa piada.
O curioso é como um deslize pode transformar uma descrição simples em algo inesperadamente cômico. “Calças arregaçadas” remetem à imagem de alguém preparado e adaptado à situação, enquanto “calças arreganhadas” evocam uma cena exagerada, quase absurda, como se as roupas tivessem adquirido vida própria. Nesse episódio, apesar do equívoco, o momento gerou risos sem comprometer a clareza, evidenciando que o vocabulário, quando usado em situações concretas, não apenas reflete a riqueza da língua, mas também destaca o papel indispensável do contexto na compreensão e no uso adequado das palavras. Apesar de tudo, a apresentadora do telejornal matinal provavelmente foi entendida pela maior parte de seus telespectadores.
O aprendizado do léxico não acontece por memorização mecânica de palavras fora de contexto. O vocabulário é uma construção que surge no dia a dia, em experiências concretas, conversas, boas leituras e, claro, deslizes engraçados como esse.
Por que boas leituras fazem a diferença?
Se há uma maneira eficaz de enriquecer o vocabulário, ela passa pelo contato com a língua em movimento. Leituras diversificadas, como romances, crônicas e até jornais, oferecem palavras dentro de um contexto, mostrando seus usos reais, tons e nuances. Ler não só amplia o repertório linguístico, mas também ensina a usar as palavras de forma natural, conectando-as a situações vividas. Em sua Estética da criação verbal, no clássico adendo em que trata dos gêneros discursivos, Mikhail Bakhtin (1895-1975) chama atenção para o fato de que, no processo de aquisição da língua, não aprendemos frases ou palavras isoladas – quando se aprendem termos como “gato”, “felino” ou “miau”, por exemplo, também se aprende em quais contextos cada um deles é mais adequado para se referir aos bichanos.
O episódio das “calças arreganhadas” ilustra, com humor, como contextos claros e associações marcantes tornam o aprendizado de palavras mais significativo. Ainda que não garanta a fixação definitiva, a cena serve como um exemplo poderoso de como as palavras ganham sentido e relevância quando conectadas a situações concretas e bem definidas, facilitando sua compreensão e retenção.
O vocabulário vive no cotidiano
A língua portuguesa, com sua riqueza e complexidade, ganha vida no dia a dia, em momentos comuns que, às vezes, se tornam extraordinários. Uma frase simples dita no calor do “ao vivo” transformou-se em um exemplo perfeito de como aprendemos o léxico: com contexto, criatividade e, principalmente, boas histórias. Não é preciso decorar listas ou recorrer a métodos engessados. O vocabulário se aprende vivendo.
E quem sabe, na próxima vez que uma apresentadora se deparar com alguém de calças arregaçadas, ela já esteja mais íntima desse detalhe prático e, quiçá, das praias? Afinal, um dia de praia pode ser um excelente professor, mesmo quando a lição vem acompanhada de uma boa dose de humor.
(*) Marcelo Módolo é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH-USP.
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