A menina dos cabelos longos, que me levou pra longe
Para Graziela Bartiê.
Só queria falar do meu amor, das coisas que sinto e muitas vezes me calo, no tímido receio de parecer exageradamente romântico ou algo assim.
Então esqueço a voz, pinço letras, dito ao papel sentimentos que só consigo expressar quando escrevo, e um carrossel de imagens vai surgindo na minha mente... Nos fundos da casa de madeira cinzenta, havia um pé de manga e no tronco mais forte, pendia uma corda sustentando um pedaço de madeira, formando o seu único brinquedo, o balanço.
As coisas dentro de casa, o álcool dominando o pai, causavam sofrimentos, mas ela prendia a dor sem deixar escapar o soluço, na certeza que as lágrimas enfraqueciam a alma e não curavam a dor. Nem tinha dez anos, mas, graciosa, já era conhecida por toda a vizinhança pelo apelido: “Chinha”. Até hoje, muitos a chamam assim e ele adora.
Nos fins de tarde, depois das tarefas escolares, as andorinhas cortavam os céus e ao mesmo tempo o sol começava a se pôr no horizonte. Ela então corria de braços abertos, sentindo a brisa da liberdade a cortar seus cabelos longos e jogava o corpo no balanço, deixando a tristeza para trás.
Num impulso, seus pés voavam o mais alto possível, quase jogando longe o velho chinelo, esparramando pelo ar os fios dos cabelos dourados que aos poucos se transformavam em raios de sol. Sabia rir e cantar ao mesmo tempo, da voz escapava uma canção de sucesso: “Ê, ê, ê, menina de cabelos longos, quero te levar para longe, no primeiro bonde a gente pode partir”.
Eu era um rapazote, passava por perto às vezes, mas ainda não ouvia a sua voz, sequer desconfiava que embaixo do pé de mangueira estava a minha luz. Seguia em frente, sobrevivendo com meus pés descalços, o corpo magro se equilibrando contra as tempestades que também invadiam a minha casa. Vidas difíceis.
Ela tinha o balanço e eu o campinho de futebol. O resto era pesadelo, que só as virtudes das mães podiam suplantar.
E o sopro do vento me fazia sonhar com ela muito antes de conhecê-la, na ressonância lírica de uma voz que me chegava aos ouvidos afirmando que em breve iria encontrá-la.
O tempo passou e chegou o momento daquela moça entrar na minha vida. Quando a tive diante dos meus olhos, sabia que ela seria a minha companheira, que juntos construiríamos a família que sempre sonhamos.
Ela relutou no começo, desconfiada dos perigos lá de fora, mas aceitou o desafio assim que me ouviu pedir: Desça desse balanço menina bonita, vamos construir a nossa própria família. E fiquei espantado ao percebê-la tão forte. Foram tantos os desafios, percalços quase intransponíveis, só a força daquela menina dos cabelos compridos poderia se transformar na injeção de coragem que quase nunca tive, sendo a luz que até hoje ilumina o nosso caminho. Lutamos juntos, apanhamos às vezes, mas vencemos a maioria das batalhas.
Dois filhos vieram: a flor e o fruto, e uma outra chama nos abrasou de repente, um neto, que a chama de Gaga, e no seu sorriso criança nos envolve nos seus dedos pequenos e no abraço forte de tanto amor. A nossa família. Trinta e dois anos se passaram e hoje acordo ao seu lado enquanto um novo dia começa lá fora.
Seus cabelos longos me apanham e seguimos caminhando.
É com meus olhos juntos aos seus que enxergo o mundo, até, quem sabe, nos transformamos num casal de velhinhos, lá adiante no tempo, juntando as mãos em silêncio, abraçados num brinquedo de balanço pendurado numa árvore no quintal.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.