A triste história do homem que queria ser passarinho.
Seu Nivaldo morreu. Essa é a grande notícia do dia. Notícia triste, é claro, como sempre foi triste a vida do seu Nivaldo, um homem solitário, dos olhos moles, encharcados d’água, a lágrima quente que não caía, (como se ele) de alguma forma conseguisse engolir a própria angústia feita saliva amarga. Acima dos olhos o assombroso par de sobrancelhas, pontiagudas e enormes, cresciam rapidamente, sem lhe dar chances de cortar. O furo no queixo era um buraco escuro, a barba sempre por fazer, o sorriso que tentava esconder, porque muito novo trocou os dentes da frente por uma perereca e a dentadura nunca parava quieta na boca. Para disfarçar, colocou dentes de ouro no lugar das presas e o que antes era feio e triste, passou a ser também um grande incômodo para quem ousava encarar diretamente o seu olhar. E quando o sol batia no seu rosto, iluminava uns riscos de expressão sofrida, o mesmo retrato dos calos nas mãos, feitos na lida com o cabo da enxada.
Pobre Nivaldo, um cão solitário e sem uivo, sempre triste.
Enxergava algo bom em mim, como se eu fosse uma espécie de socorro à sua aflição. “Li o sua foto no jornal” dizia sempre, no habitual riso disfarçado, mal sabia assinar o próprio nome. A casa de taboa, residência do Nivaldo desde muitos invernos, era a típica casa de antigamente, um poço cercado de tijolos no canto da frente, uma trinca de madeira formando a base da qual a roldana chorava enquanto puxava a água na corda carcomida. A única sombra era a varanda do telhado semi despencado, apontando o banheiro fora da casa, no fundo do quintal. “Minha avó ouviu um bem-te-vi cantando na janela da minha mãe e então sabia que ela estava grávida: nem deu sete meses e eu nasci. Parece um passarinho, disse a minha mãe, e a avó falou sem muito pensar, parece mesmo, uma coruja. Eu já nasci com as sobrancelhas assim”.
Eu ia visita-lo porque batia uma dor dentro de mim ao pensar naquele senhor tão triste e solitário. Só eu ia visita-lo. “O tempo passa ligeiro demais, a gente nem pensa e já aconteceu, a gente mal bebe e a água já vira urina, escorre no ralo e o mormaço vai levando a água fedida e amarela para dentro do chão, eu nem sei onde tudo vai dar.” Sem querer, criava filosofia: “A vida é rápida como a urina entrando no chão”.
Para ajudar nas despesas, além do serviço com a enxada, Nivaldo criava abelhas no fundo do quintal e às vezes vendia algum dos curiós que criava nas diversas gaiolas presas nas estroncas dos fundos da casa. “Olha como canta esse bicho!” Exclamava e logo abaixava a cabeça, sussurrando uma dolorida confissão na voz embargada: “eu queria ser curió”.
Certa vez foi preso: as abelhas se enfezaram na primeira vez que conseguiu encher de mel uma garrafa, e ao tentar vende-la, o marido da dona Efigênia achou muito caro os dez reais que ele pediu. “Minha boca ficou enorme de tanta picada de abelha e o sujeito achou muito caro pagar dez reais”, bateu com a garrafa na cabeça do marido da dona Efigênia e só não o matou porque sabia sentiu o fervor cobrir o seu rosto e (sabia) quando enfezado ficava mais feio que o normal.
“O sujeito não merecia o gasto da ponta da minha faca”. Um dia sumiu e somente eu percebi. Três dias depois reapareceu, no bar da esquina lotado, numa assombrosa quietude, pediu um copo de pinga e me olhou como quem confessa um segredo. Eu sabia, no eixo daquele olhar de brilhos inesperados, giravam os carinhos de mulher. Sim, tempos depois me confessou, guardou um bom dinheiro e foi até outra cidade à procura de uma casa mal falada, ficou lá o dia todo, bebendo e sorrindo, sem que ninguém sentisse ojeriza de suas sobrancelhas, se incomodasse com o brilho de seus dentes de ouro e nem mesmo com a perereca a lhe escapar pela boca a todo instante. Pagou as bebidas e não se deitou com nenhuma mulher, já lhe bastou o prazer de não ser tratado como uma doença que se pega só de olhar, mesmo pagando, sentiu pela primeira vez o calor de alguns carinhos nos cabelos surrados e até mesmo uma alisada fraca nas malditas sobrancelhas.
Para o Nivaldo, a felicidade tinha preço. “Vou juntar mais dinheiro e volto lá daqui uns tempos” sorriu e cuspiu no chão uma saliva grossa, pisada pelos pés descalços dos dedos tortos e das unhas grossas e pontudas.
Morreu dormindo, como um passarinho, disse o vizinho.
No enterro, somente eu estava lá, olhando para o seu rosto fechado, parecendo sonhar nascer novamente, outro passarinho, não a coruja, nem o bem-te-vi, talvez, com sorte, um curió do canto tão belo que a todos pudesse encantar. Então não precisaria colocar as mãos na boca o tempo todo tentando esconder os dentes, nem mesmo baixar o rosto para esconder as assombradas sobrancelhas, seria como sempre quis e nunca conseguiu, apenas um passarinho, cantando feliz no galho de uma árvore do tronco tão imenso, do tamanho da felicidade que nunca nessa vida pôde abraçar.