Há murmúrios dolentes de segredos – parte dois.
Novamente aconteceu, no exato lugar de antes, quarta-feira, sete da manhã, cruzamento da Avenida Salgado Filho com a Rua Brilhante, semáforo fechado.
O tempo para e me perco em pensamentos.
Sinto uma súbita vontade de compor poesia, mas comecei a beber café sem açúcar e o gosto amargo ainda resiste na minha boca.
Há lá fora o sopro de tristeza indefinida – tão forte e denso – acaba me convencendo a fazer exalar o poema que insisto reprimir:
A princípio o precipício, tormenta que não quis, o nada, o inexistir, escuro e fundo, como deve ser o verso que ainda não fiz.
Na próxima esquina surge a figura de uma mulher magra, não tão idosa, mas já longe da fase juvenil. Seus olhos são dois velhos pobrezinhos e me lembra alguém...
Finjo não a perceber e recebo como resposta um sorriso de dente brilhoso.
O vento sopra nos meus ouvidos palavras difusas, mas logo realinhadas na minha mente: “longe de ti são ermos os caminhos...”
Os cabelos escapados do lenço preso à cabeça sugerem uns fios grisalhos brigando com o vento. O rosto fino lembra pedra coberta de frio, me traz a certeza que não há felicidade naquele rosto, apenas uma fleuma de imensa tristeza.
Ela desaparece quando o sinal abre e só então consigo me livrar da minha quase eterna indolência, suspiro fundo, resmungo, murmuro: Florbela, não fique triste, o mundo é mal, só se cura com poesia.
Mas será que ela desapareceu realmente? Resolvo voltar, dar uma volta na quadra. Do lado direito há um posto de gasolina, no mesmo lugar que antigamente existia o bar Pelé. Em frente, o majestoso terreno, um dia foi campo de futebol e eu moleque fiz gols ali.
O tempo passa depressa demais, é o frio de ontem me apanhando sem sobras, enquanto o murmúrio grita em mim o desapego que muitas vezes não consigo ter.
Nem tudo a enxurrada do tempo conseguiu levar...
Completo a volta, acelero o carro, passo em frente ao número 158, a casa que nasci. Resolvo estacionar e olhar lá dentro.
O quintal ainda carrega restos da chuva daquele carnaval.
Há um pote de mágoas enterrado naquele terreno, o fio de cabelo, a navalha afiada, a cadela no cio sendo arrastada pelo cachorro vitorioso, enquanto os outros cães latem e os meninos lhe atiram pedras.
Invade as minhas narinas um cheiro de roupa molhada estendida no varal.
Em meio à essa dolorosa entropia, peço socorro a Rosa e ele imediatamente me atende, faz surgir na minha cabeça o som do sino distante, logo transformado em palavras: já é sertão no céu de antigamente, desperto louco inverso, o corpo nu de Diadorim, morto a golpes de faca, revelando impensável segredo.
Corre Riobaldo, vem ver o que restou do seu amigo do rosto quente, perdido junto de ti naquele mundo vasto de poeira, onde não mora ninguém e a terra vermelha, inclemente, subindo aos céus, é a única paisagem restante da capa de um livro bom, mas de história triste.
Venha trôpego jagunço, venha ver os pedregulhos se juntando na minha memória, até formar o rosto da minha avó, me diga Riobaldo, qual coração sofre dor pior? O seu passado, o meu presente, o futuro que nunca sabemos qual será? Ouço a resposta no murmúrio do amigo vento: não existe o diabo, o que existe são esses pensamentos a entristecer a alma.
Alguém buzina, uma moto passa apressada e eu nem ligo, absorto na visão dos dentes brilhando abaixo de dois olhos pobrezinhos, caminhando à minha frente em busca do final da Avenida Salgado Filho, cuidando muitas vezes de olhar para trás na busca de me enxergar e eu, timidamente, respondo num apelo de aceno.
É quando o murmúrio de Florbela despenca, espanca a alma, me diz gentilmente as letras de um conto de fadas no qual devo me inserir, “eu trago-te nas mãos o esquecimento, das horas más que tens vivido, amor! E para as tuas chagas o unguento com que sarei a minha própria dor”.
Então me convenço, tudo começa com o tenro era uma vez e termina com um seco nunca mais.
Um suspiro de alívio, a certeza: a poesia salva, mas não só ela, o romance e o conto também.
Na outra esquina já é passagem amarelada, de quando a cor do dia acabando se torna mais densa, e o vento, sempre ele, me acaricia prometendo levar para longe o trovão.
Desperto e já não é rua, é meu quarto, ainda carregado de sonhos, às vezes bons, às vezes incompreensivos, mas sempre tão reais, quase consigo apanhá-los com as mãos.
A vida lá fora me chama e eu vou, embora a certeza que os murmúrios me acompanham...
André Alvez
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