O amigo dos cabelos lisos jogados na testa
Era uma bola de capotão, costurada com fio de náilon, brilhosa e perfeita. Veio voando entre dois meninos adversários e explodiu no meu peito, enfiado no meio deles. Antes da bola cair ao chão, a chutei com toda força da minha perna direita, fazendo estufar a rede. O goleiro, um tal Jonas, diziam que não tomava gols quase de jeito nenhum. Quase. Aquela bola ele ficou olhando, pasmo, sem conseguir se mover. Fiquei pálido por instantes, olhando o barulho, ouvindo a bola de capotão se esparramar dentro da rede. Que gol, cara! Disse o menino japonês ao meu lado, um outro pulou nas minhas costas e o José Rodrigues, na ponta da trave, os olhos brilhando, apenas balançava a cabeça, incrédulo. Só depois deixou escapar a fala mansa: que gol, que gol!
No balcão do restaurante que fica no supermercado que frequento, pedi o bife à parmegiana do meu filho, só com o olhar e o dedão erguido para cima: eles já sabem qual é, como é, quanto custa e o tempo que demora.
- Um chope – peço em seguida, erguendo novamente o dedo, já me virando e ajeitando uma cadeira na mesa. Do canto do restaurante ele se ergueu, veio ao meu encontro e o reconheci na hora: José Rodrigues, amigo de infância, o garoto dos cabelos lisos, compridos e das pontas jogadas na testa, do jeito que eu queria ter.
- Cara, é você? – Ele disse, surpreso. –
- Sim, sou eu, meu amigo José Rodrigues.
Ele coçou a orelha, a testa tremeu levemente, como se mirasse uma bola imaginária, espalhando os cabelos no rosto um tanto enrugado. Sim, eles ainda estão lá, os belos cabelos, agora grisalhos. Ele me olhou com demora, fechando os olhos quase completamente.
- Desculpe, esqueci o seu nome.
Eu disse o meu nome e ele parece nem ouvir.
- Cara, aquele gol, nossa, aquele gol...
Os olhos dele voam até o passado. O chope chega, ele se senta ao meu lado e pede também uma caneca. O menino garçom vai e vem numa rapidez espantosa. Duas canecas de chope entre nós, mais de quarenta anos de história, e tudo o que o velho amigo conseguia lembrar era daquele gol.
- O goleiro deles nem reagiu, não tinha como, foi uma pancada no ângulo.
- Sim, foi mesmo.
- Como você conseguiu?
- Por instinto, eu acho, quando vi, já tinha chutado.
- Cara, foi no ângulo, no ângulo... e balançou a cabeça fazendo dançar os cabelos grisalhos pela testa. Ainda hoje eu queria ter aquele cabelo. As garotas queriam o José Rodrigues. A mais formosa se chamava Elisete, ou algo assim, usava óculos de graus, os olhos ficavam pequeninos, perdidos dentro das lentes, tinha os cabelos pretos e lisos, um cheiro de flor, um furinho na bochecha ao sorrir. E ela sorria sempre quando perto do José Rodrigues.
- A cara do goleiro, nunca esqueci. Eu queria tanto ter feito um gol daqueles, um só, aquele gol, a vida toda eu só queria aquilo.
Tentei mudar o assunto:
- E aquela vez, o teatro na escola, lembra?
- Teatro? Não, não lembro. – e deu de ombros –
Tomei um gole longo de chope, enxuguei com os dedos a espuma e me calei enquanto o pensamento me tomava: que sujeito desprezível, conseguiu esquecer um momento tão mágico! Até hoje escuto a voz da filha da diretora, que também era nossa colega de classe. Como é o nome dela? Pouco importa, a voz está viva na minha memória: “vamos fazer uma peça teatral, a festa dos bichos na floresta” anunciou, já com os textos recém retirados do mimeógrafo e exalando álcool. Fiquei empolgadíssimo, fui o primeiro a me levantar, mas ela fez não me enxergar. Dando as costas, começou a distribuir os papéis. José Rodrigues seria o Leão, Augusto o Leopardo e ela seria a leoa, ou a leoparda, estava em dúvidas. Depois foi distribuindo os outros papéis e minha vista foi murchando.
- Teria um papel para mim? – minha pergunta caiu num oco vazio –
A meu favor, a timidez dos outros alunos era maior que a empolgação, muitos não quiseram participar. Só então olhou para mim, a filha da diretora, moça linda dos olhos azuis:
- Você pode ser o papagaio, já que não para de falar;
- O papagaio? Sim, que maravilha, quero muito fazer.
O japonês baixinho da ponta protestou: - Se eu for participar, quero ser o papagaio.
Maldito, ganhou na hora, era o queridinho da moça loira dos olhos azuis, filha da diretora.
- E eu?
- Calma, vamos ver. Quem quer fazer o macaco?
Ninguém se manifestou. Meus olhos brilharam e a garota linda não conseguiu escapar:
- É... Pode ser você, vive fazendo macaquices e o personagem combina com os seus cabelos.
Nada respondi, apanhei de suas mãos, brancas como a neve, o texto e fui para o canto da sala. Decorei a fala em poucos minutos, um brilho de macaco feliz exposto na minha testa. Quando voltei para frente, Augusto já não queria ser o leopardo, preferia fazer o macaco.
Tentei protestar:
- Mas eu já decorei a fala e...
Não consegui falar mais nada. Augusto, que também tinha olhos azuis, puxou o papel das minhas mãos. Ele seria o macaco e ponto final.
E outros bichos foram sendo definidos, o urso, o elefante, a ema, uma girafa e até um gafanhoto, eu no canto, sentando, entristecido, falando com o olhar para o amigo Luís Roberto, o único que me entendia e também tinha os cabelos crespos.
Nunca fui de chorar, nem mesmo diante daquele brutal e cruel par de olhos azuis da filha da diretora. Como é mesmo o nome dela? Não lembro. De repente, ela se virou na direção do fundo da sala de aula:
- Sobrou o burro, mas acho que esse vou cortar, ninguém vai querer fazer.
- Eu quero! Gritei, para desespero do amigo Luís Roberto.
A filha da diretora, além dos olhos azuis, tinha os cabelos loiros ondulados e vestia minissaia xadrez, nem tentou recuar, já foi me passando pelos dedos brancos o texto com a fala do burro.
Na saída, Luís Roberto protestou: - você é um guri estúpido, eles te humilharam...
Fiz que não ouvi, já estava incorporando o burro e não me custava nada dar um coice no amigo Luís Roberto.
O menino garçom me traz outro chope sem eu pedir. Ele sabe que sempre tomo duas canecas.
- José Rodrigues, você está bem, o que faz na vida?
- Vivo de rendas, meu pai me deixou umas casas de aluguel.
- E não faz mais nada?
- Às vezes ajudo a Elisete no trabalho dela.
Elisete? Será a mesma de antes? Carreguei uma paixonite por ela, não posso negar.
- Lembra dela? Estudava na nossa sala. É contadora.
- Ah, sim, lembro vagamente...
- E você, faz o quê?
Era o momento da vingança. Enchi a boca na resposta:
- Sou escritor.
Ele ergueu os olhos, assoprou os cabelos da testa, me encarou como diante de um ser de outro planeta.
- Sério? Essa profissão existe?
A minha indignação foi daquelas de erguer as sobrancelhas. Um cara que vive de aluguel e nunca fez um gol bonito na vida, como pode imaginar a inexistência do ofício de escritor? Ele sequer notou o meu assombro, seu pensamento ainda caminhava no dia daquele jogo, quarenta e alguns anos atrás.
- O dono daquele campinho deve ter morrido. Hoje tem um prédio lá.
- Certamente.
- Senhor Irineu, lembro bem dele, capinou o terreno, fincou as traves de aroeira, fez as linhas com a cal e o mais incrível: comprou e armou as redes que você estufou. Ah, cara, que gol, que gol!
Tomei mais um gole do chope.
- Dê lembranças à Elisete.
- Ah, darei sim, ela sempre se zanga contigo.
- Comigo? Ela se lembra de mim?
- De você propriamente não, mas do gol que você fez, eu sempre falo dele e ela se emburrece e diz: maldito guri da cara torta.
Eu tenho a cara torta? Parece que sim, pelo menos para a Elisete. Não digo nada. Na quietude, o desenho do rosto da Elisete surge diante de mim: ela era estrábica, mas nunca a chamei de zarolha.
Tomo o último gole do chope e me preparo para ir embora. José Rodrigues percebe, também bebe o último gole e me pede calma, quer beber mais.
- Você ainda joga bola?
- Não, parei faz tempo, desde que a barriga cresceu e os joelhos começaram a trincar. E você?
- Continuo. Não morrerei enquanto não fazer um gol daquele, uma matada no peito entre os dois zagueiros e uma pancada no ângulo, sem chances para o goleiro.
Sorri malicioso ao lembrar o tanto que ele jogava mal.
O garçom traz o marmitex contendo o bife à parmegiana para o meu filho. Nesses tempos que não se pode dar as mãos, fiz um gesto com o punho e deixei lá o José Rodrigues, cabelos lisos grisalhos esparramados pelo rosto, o mesmo olhar de antes, sonhando com o gol que eu marquei, logo eu, o cara torta, que só queria ter os cabelos iguais aos dele.
- Que gol, que gol! – ainda o escuto enquanto caminho rumo ao meu carro no estacionamento.
Registro um sorriso na minha face provavelmente torta, resistindo o quanto pude para não voltar lá, dizer ao José Rodrigues que o gol foi lindo, mas não teve para mim nem a metade da importância da apresentação da peça teatral, essa sim, inesquecível, a plateia lotada, encantada com um guri da cara torta que encenou o mais perfeito burro de toda a história do Colégio Oswaldo Cruz.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.