Quando uma injeção acabava com a dor de garganta
A minha garganta fere, se zanga por quase nada. E assim desde quando o galo cantava acordando a vizinhança e o cacarejar incomodava ainda mais a minha dor.
Que ano foi aquele, tão distante dos meus olhos?
A cena dentro da farmácia de antigamente se abre em minha mente nesse instante de engolir dificultoso da saliva, a garganta ardendo na mesma dor de antes:
Antigamente:
Duas pessoas atrás do balcão, um senhor magro do bigode grosso e sorriso de lagarto. Ao seu lado uma senhora de gestos delicados, rosto rosado, nariz fremente, no máximo um metro e sessenta, dona de um sorriso de mãe.
Ninguém na fila. Chego junto ao balcão:
- Amigo, estou com uma dor infeliz na garganta, um pouco de febre e dor de cabeça.
- Ah sim, está dando muito essa gripe, melhor tomar logo uma injeção.
- Tem eucaliptina?
Ele olha ligeiro para a única prateleira ao seu lado. Nem se levanta, faz um sinal com a testa, a senhora já pega a eucaliptina e logo ele prepara a injeção. Cheiro de álcool e fogo espalhado no ar. Ergo a manga da camisa, estico o braço, viro o rosto para o lado e platz, injeção tomada.
- Doeu?
- Nada, estou acostumado. Certa vez, tomei quatorze despacilina em uma semana para acabar com uma bronquite, fiquei com os braços doloridos, mas valeu a pena.
- Ah, sim, despacilina é ótima. Mas você devia ter tomado na bunda.
- Não, não, sou invocado com essas coisas, prefiro no braço mesmo.
Ele se faz sério:
- Eu também sou assim.
Três bocas sorrindo.
- Quanto devo?
- Deixa eu ver...(puxa um ficha, faz um risco de lápis)...Dezenove mil cruzeiros.
Pago com quarenta e cinco notas de dinheiro. A senhora se aproxima, gestos delicados, a mão no canto da boca pedindo cumplicidade.
- Se não melhorar, você precisa tomar mais uma eucaliptina amanhã.
Sorrio, ela faz uma interrogação na sobrancelha:
- Só essa já dá, sempre resolve uma só.
Saio para a rua e a dor na garganta já vai passando.
No outro dia, nem o braço dolorido pela injeção, nem o cacarejar do galo conseguiram me incomodar. Era uma manhã belíssima e a garganta funcionando normalmente. Santa eucaliptina.
Nos dias de hoje:
Acordei com o velho incômodo de antes, a garganta dolorida. O brilho de um carro luminoso, dos faróis fortes e escuridão interior, passa diante de mim e suas cores apagam o passado.
Depois de vários minutos procurando, finalmente encontro uma farmácia com vaga no estacionamento.
Prateleiras de vidros majestosos espalhadas por todos os lados, uma fila gigante de gente usando máscaras até o fim do corredor onde se postavam três ou quatro atendentes.
Antigamente era bem melhor, digo num murmúrio.
Enfim, chega a minha vez:
Um menino com um ferro perfurando o canto da sobrancelha me atende. Demoro um pouco olhando o artefato de metal. Como é o nome? Piercing. Minha filha usa no nariz. Quem será que teve essa ideia primeiro? Ele interrompe o meu pensamento:
- Pois não, senhor?
- Cara, eu estou com uma dor de garganta enjoada, você tem eucaliptina?
- Eucaliptol?
- No meu tempo era eucaliptina, mas deve servir essa mesma.
- Ah sim, só temos em drágea, pode ser?
- Drágea?
- Comprimido.
- Já fazem injeção em comprimido?
- Não, é um xarope.
- Xarope? Não tem injeção?
- Tem, mas nesse caso o senhor tem a receita médica?
- Precisa de receita? Sempre tomei e...
- Senhor, sem receita não podemos vender, é a norma.
- Mas é uma injeção simplesinha, pequenina, só serve para garganta inflamada.
- Não podemos vender, infelizmente, é a norma. E mesmo se o senhor tivesse a receita, teria que procurar outro lugar para aplicar a injeção.
- Vocês não aplicam injeção?
- Nossa unidade da Avenida Zahran aplica.
- Mas isso é do outro lado da cidade.
- Sim, mas infelizmente só dispomos de um profissional naquela unidade, é a norma.
- Precisa ser profissional para aplicar uma injeção?
- Não sei, só sei que é assim.
Sorrio, balanço a cabeça, resolvo fazer graça:
- Você falou igual ao personagem do Suassuna.
Perdido com os olhos no computador, ele não presta atenção na minha frase por inteiro.
- Suassuna não temos.
- Oi?
- Esse remédio, Suassuna...Não temos.
Um suspiro de lamento diante da ignorância alheia.
- Ah sim, ok. Tem pastilha para dor de garganta?
- Temos sim.
- Então vou levar só a pastilha.
- O senhor prefere qual sabor?
- Sabor? Como assim? Tem outro que não seja menta?
- Temos vários sabores.
- Tem de menta?
- Tem.
- Então quero de menta.
Ele então firmou os dedos no teclado do computador e me encarou:
- Seu CPF, por favor.
- Oi, precisa disso para comprar uma pastilha?
- É a norma, senhor.
Balanço a cabeça e falo os números. Não é impressionante a quantidade de números que temos guardados na memória?
- Vi aqui, o senhor já tem cadastro.
- Ah, excelente.
- Tem convênio?
- Tenho.
- Dá um bom desconto.
Digo o nome do convênio e me ocorre levar um analgésico para ajudar a pastilha.
- Me vê também um analgésico.
- O senhor quer o original ou prefere levar o genérico?
- Qual a diferença?
- O genérico é bem mais barato.
- É o mesmo remédio?
- Sim, exatamente a mesma fórmula.
- Então eu quero esse genérico.
- Mas no genérico, não tem desconto pelo convênio.
- Entendo. Me dá o original com desconto, então.
Ele digita um texto enorme no computador. Para, olha, apaga, começa de novo.
(penso com meus já irritados botões) Mozart não demorou tudo isso para compor a primeira sinfonia.
- Como é mesmo o seu CPF?
Digo novamente os números. O computador trava.
- Às vezes acontece – ele diz num riso sem graça e logo estala os dedos, estica os braços para trás. Na fila, pelo menos sete pessoas aguardam, alguns já batendo o pé no assoalho. O computador finalmente apita. É o sinal do destravo. Ele sorri.
- Aguarde um momento, por favor.
Se perde entre as prateleiras, demora, resmunga, pede auxílio ao colega. Nove minutos depois (sim, contei no relógio. Sim, eu ainda uso relógio) ele chega triunfante, põe os cotovelos no balcão trazendo o analgésico e a pastilha. O computador emite o recibo, três longas tiras de papéis inúteis. Tiro da carteira o cartão de crédito, ele sorri.
- Pagamento é no caixa lá no balcão da frente.
Olho para o balcão da frente, quinze pessoas na fila.
- Não posso mesmo pagar aqui? Você já sabe toda a minha vida aí no computador.
- Infelizmente não senhor, é a norma.
Lá vou eu juntando o resto de calma. Dez ou quinze minutos depois, chega finalmente a minha vez de pagar. A moça de dentes cercados de aparelhos sorri para mim:
- Seu CPF?
Incrédulo, tento argumentar:
- De novo? Mas eu já disse tudo para o rapaz do balcão.
Ela sorri, um brilho metálico na boca. Balanço a cabeça, ela não liga, a sobrancelha desenhada a lápis brilha, arqueia.
- É a norma, senhor.
- Não faz sentido, deve ter no seu computador, o rapaz lá atrás digitou tudo.
- Não sei, só sei que é assim.
Chicó não gostaria das tais normas. Ou a frase é do João Grilo? Nunca sei ao certo. Só sei que se estivessem ali comigo, evocariam a presença da imaculada Nossa Senhora. Um suspiro de quem não tem saída, digo novamente o meu CPF, ela pede o endereço, com CEP, detalho tudo, ela pergunta do convênio, nem me chateio, um barco sambando no meu dorso em devaneio. E no final, novamente, o computador emite os longos e inúteis papéis recibos.
Ah, eu sinceramente não sei se é saudosismo a certeza que as farmácias de antes eram muito melhores.
Saio pela porta de vidro que se abre sozinha, como se fizesse um pedido de desculpas.
Na rua a lua cheia ilumina a cidade, sigo um barbante imaginário na calçada. No fundo da mente ecoa o canto do galo antigo acordando a vizinhança, à frente a buzina de um carro luminoso e escuro atravessando o sinal fechado registra o presente.
E mastigo a pastilha rezando para a dor na garganta ir embora enquanto um pensamento insólito me ocorre: o passado já sei, o presente agora piso, como será o futuro? Na inocência de um apanhador de sonhos bons, imagino que não exista por lá nenhuma dor de garganta, aliás, não exista dor alguma, nem normas ridículas, nem mesmo farmácias.