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Cidades

De traficante a preso que comete latrocínio, fugas colocam tornozeleira em xeque

Quatro episódios noticiados só nesta semana colocam em dúvida monitoramento virtual de criminosos

Marta Ferreira | 30/04/2020 17:10
Na Unidade Mista de Monitoramento Virtual, funcionário acompanha na tela onde estão presos com tornozeleira. (Foto: Divulgação)
Na Unidade Mista de Monitoramento Virtual, funcionário acompanha na tela onde estão presos com tornozeleira. (Foto: Divulgação)

Na última semana, quatro episódios noticiados pelo Campo Grande News ampliam o ponto de interrogação sobre a eficácia do “presídio virtual” criado em Mato Grosso do Sul no ano de 2016, quando começou o monitoramento via tornozeleira eletrônica, com a meta principal de tirar do sistema prisional quem responde por crimes menos graves e, assim, diminuir a superlotação carcerária. Os casos envolvem traficante desconhecido, pego com arma e munição; detento em prisão domiciliar, apesar de condenações por assassinato, que invadiu a casa da sogra atrás da mulher; criminoso internacional com mais de cem anos de prisão, que simplesmente desapareceu; e por último ladrão em liberdade provisória envolvido em latrocínio.

Em comum: os quatro haviam colocado tornozeleira eletrônica graças a determinações judiciais e, em tese, não poderiam estar longe do local predeterminado. Pior ainda fugindo ou cometer novos ilícitos. Pela propaganda dessa forma de vigília do estado sobre quem está “fora da lei”, teriam, pelo menos, de ser impedidos de deslocar-se tão facilmente.

Pelo que sempre foi divulgado, quando um detento sai da área permitida ou quebra a tornozeleira, a Unidade Mista de Monitoramento Virtual, ligada à Agepen (Agência de Administração do Sistema Penitenciário) aciona as forças policiais para, rapidamente, localizá-lo.  O último dado noticiado indicava 1,7 mil em monitoração por meio da tecnologia.

Os casos citados colocam em dúvida esse sistema.

Gerson Palermo, condenado a mais de cem anos, ficou poucas horas com tornozeleira e fugiu. (Foto: Direto dsa Ruas)
Gerson Palermo, condenado a mais de cem anos, ficou poucas horas com tornozeleira e fugiu. (Foto: Direto dsa Ruas)

A situação mais rumorosa foi a fuga de Gerson Palermo, 62 anos, com penas a cumprir superiores a cem anos de reclusão, por crimes que vão de tráfico de drogas ao sequestro de avião da Vasp para roubar R$ 5 milhões, no começo dos anos 2000.

Ele cumpria as punições desde 2017 no EPJFC (Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho), de segurança máxima, em Campo Grande, foi liberado graças à decisão do desembargador Divoncir Scheirener Maran, no plantão judicial de 21 de abril, acatando argumento de que o preso corria risco de contrair o novo coronavírus. O equipamento foi instalado no dia 22, por volta do meio dia e oito horas depois, escabou e deixou a tornozeleira para trás, na casa da esposa, na Cophamat. A polícia até foi ao local, mas nada do detento.

No mesmo dia, outro despacho do desembargador Jonas Hass reverteu a decisão, quando já não havia mais tempo. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) abriu inestigação a respeito e deu prazo de 15 dias para o desembargador responsável se explicar.

Com ressalvas - Sobra, quando episódios assim ocorrem, para a polícia tentar capturar os que burlam as regras e para o Ministério Público a tarefa de buscar na Justiça que eles sejam alvos de punição e encarceramento.

Para o presidente da Associação dos Membros do Ministério Público em Mato Grosso do Sul, Romão Ávila Milhan Junior, o xis da questão não está no instituto da tornozeleira eletrônica em si, incluído no Código de Processo Penal do Brasil desde 2011. Ele enxerga no “filtro” para conceder o benefício o gargalo.

“O uso indiscriminado como medida alternativa à decretação da prisão pode gerar o que você nos relatou nesses fatos”, em resposta à citação pela reportagem dos casos narrados no texto.

 “A legislação tem vários pressupostos para análise da decretação de prisão. Tem uma subjetividade envolvida e é por isso que, às vezes, um magistrado prende e outro solta. A legislação, ela não é tarifária, embora haja casos que saltem aos olhos”, comenta.

Em linhas gerais, réu primário, com residência fixa e que não ofereça, no entendimento do juiz responsável, risco à investigação ou ao cumprimento da pena, quando já condenado, costuma ganhar a liberdade e, dependendo do caso, sai com uso da tornozeleira eletrônica.

Àvila Júnior vislumbra, também, outro pano de fundo. Na leitura dele, essa tecnologia antes vistas só filmes  e  implantado como “remédio” para a superlotação dos presídios no Brasil, foi se contaminando por clima de “afrouxamento” da aplicação leis punitivas. “É uma atuação pró-crime e não contra o crime”, acredita.

O secretário de Justiça e Segurança Pública, Antônio Carlos Videira, diz que tornozeleira eletrônica também ajuda a identificar rapidamente quem volta a delinquir. (Foto: Marcos Maluf)
O secretário de Justiça e Segurança Pública, Antônio Carlos Videira, diz que tornozeleira eletrônica também ajuda a identificar rapidamente quem volta a delinquir. (Foto: Marcos Maluf)

Funciona - “O emprego de tornozeleiras é tendência nacional, pois não basta apenas encarcerar, temos a missão de promover a ressocialização”, argumenta o secretário de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, Antônio Carlos Videira, em defesa do monitoramento virtual.

“É evidente que muitas pessoas, embora de tornozeleiras, voltam a praticar crimes, mas a grande maioria não, e quando cometem são facilmente identificadas”, observa.

Dos quatro presos citados pelo Campo Grande News, três, de fato, foram pegos, depois de cometer novas infrações criminais. Uma delas envolve o assassinato de uma mulher para roubar.

Videira elenca dados em favor da necessidade do uso da vigília virtual considerando o alto número de presos sob custódia do Poder Público no Estado, mais de 20 mil só nas penitenciárias fechadas.

“MS tem a maior população carcerária per capita do mundo. Enquanto a média nacional é de 355 presos por 100 mil habitantes – o país que mais encarcera no mundo, os EUA têm uma média de 655 por 100 mil - e nós, segundo o CNJ [Conselho Nacional de Justiça, 703 presos por 100 mil habitantes, dos quais mais de 40% são do tráfico”, relaciona.

“O uso das tornozeleiras é uma forma de minimizar a superpopulação carcerária, não misturar presos, reduzir o fornecimento de mão de obra para facções, entre outras medidas que hoje se exige”, prossegue Videira.

Critérios - A reportagem conversou com outros operadores do Direito e a análise é que a p sistema de custódia à distância tem seu lugar como medida cautelar alternativa ao cárcere, mas sua aplicação precisa ser muito bem avaliada. A leitura é de que, na prática, só funciona de fato para quem não quer voltar a delinquir. Seria até uma forma de não jogar no meio da massa carcerária quem não tem "vocação" para entrar na chamada “escola do crime”.

“Para crimes como tráfico doméstico de drogas não tem valia nenhuma, é mera peça decorativa”, afirma uma fonte da área de segurança. “Como por exemplo para o indivíduo que faz da sua casa uma boca de fumo”, exemplifica.

Para outra fonte, do Judiciário, o instrumento é positivo, porém exige peneira fina para os escolhidos.  “A fuga reforça que o cidadão não estava apto”, sintetiza.

“A lei conta com a autodisciplina e o senso de responsabilidade daqueles que estão cumprindo pena ou outra medida de restrição da liberdade fora dos muros do presídio”, avalia José Belga Trad, advogado criminalista.

“Haverá sempre o risco de violação, mas há consequências e a consequência é o imediato retorno para o regime mais gravoso”, anota.

Para o profissional do Direito, a tornozeleira “cumpre bem o papel de constatar eventuais violações às determinações judiciais, mas não garante que o custodiado vá fielmente cumprir as determinações”.

No fim, assim como as outras duas fontes, o advogado diz que quem define se quer continuar como criminoso é o próprio apenado. “A escolha final é sempre do custodiado”.

O Campo Grande News solicitou as informações sobre como funciona o sistema de monitoramento das tornozeleiras à Agepen (Agência de Administração do Sistema Penitenciário), além de dados a respeito da utilização do recurso, mas não recebeu o retorno até o fechamento desse texto.

Tornozeleira eletrônica passou a ser usada em Mato Grosso do Sul em 2016. (Foto: Arquivo)
Tornozeleira eletrônica passou a ser usada em Mato Grosso do Sul em 2016. (Foto: Arquivo)


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