“Eu tenho medo de sair na rua”, diz boliviana que vive sem documentos há 44 anos
Moradora de Corumbá procurou ajuda em ação da Justiça Federal em busca de se tornar cidadã
“Eu tenho medo de sair na rua e a polícia me prender de noite”. Aos 44 anos, imigrante boliviana ilustra, em Mato Grosso do Sul, o tema proposto na redação do Enem 2021, “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. Sem documentos bolivianos ou brasileiros, ela vive em constante medo, sem acesso aos serviços públicos.
Mesmo pensando que poderia ser deportada, a moradora de Corumbá resolveu ir ao encontro da Justiça Federal durante a semana passada em uma ação itinerante. Por não possuir documentos e estar em busca da regularização, ela terá a identidade preservada.
Em vídeo gravado durante a ação do Ônibus da Justiça, na Escola Rural Monte Azul, a moradora contou que foi trazida ao Brasil com sete anos por uma família e, desde então, vive sem qualquer documento. “Vim pequena e morava num assentamento. Mandavam [a família] eu pedir dinheiro na rua e nunca tive documento”, diz.
Sobre a idade, a imigrante explicou que se lembra de um bolo de aniversário feito pela família que a trouxe até o Brasil. Apenas graças à vela é que ela se recorda dos sete anos. Em relação ao seu passado na Bolívia, sua memória indica que morava em um abrigo, sem saber de pais biológicos ou qualquer outro aspecto que a ajude em sua narrativa identitária inicial.
Emocionada, ela explica que a falta de registro civil acarreta problemas que vão desde não receber atendimento médico até não conseguir registrar o filho de três anos. Por não possuir certidão de nascimento ou qualquer outro documento de identificação, a boliviana relata que não conseguiu documentos para o próprio filho, gerando dificuldades para acesso à educação.
Constantemente em situação de vulnerabilidade, a mulher narrou que chegou a tentar receber um sacolão oferecido pelo Poder Público, mas desistiu quando solicitaram seu CPF. Cansada de viver como um fantasma, ela resolveu ir até a ação da Justiça Federal Itinerante.
No local, ela recebeu atendimento e foi acompanhada pela DPU (Defensoria Pública da União), que é parceira da ação, para que consiga judicialmente os documentos brasileiros. “Eu estou emocionada. Não consegui nem comer. Para todo mundo tem jeito, por que para mim nunca tem jeito? [...] Me pergunto ‘por que o Senhor me abandona? Eu preciso do senhor’. Estou tremendo, emocionada”, explica sobre a ajuda.
Situação complexa - Defensor Público da União, Welmo Rodrigues explicou que pretende entrar com uma ação judicial referente ao caso da imigrante até abril do próximo ano devido à complexidade do caso. “Tudo indica que ela foi trazida de maneira irregular ao Brasil, porque não possui registro. Morou por um tempo com um casal e depois foi abandonada e viveu em situação de rua”, disse.
O defensor conta que durante a conversa com a imigrante, foi relatado que sua vida foi marcada por violência doméstica. “Durante esses mais de 30 anos no Brasil, ela sempre teve medo de procurar as autoridades para fazer uma denúncia e ser deportada para a Bolívia por estar irregular no País”.
Por não possuir documentos bolivianos, o caminho em busca de se tornar cidadã precisou ser continuado justamente indo até a PF (Polícia Federal), de acordo com Rodrigues. Esta ida até a PF é necessária para que seja verificado se há registros criminais internacionalmente e, conforme consulta na Interpol, a mulher não possui qualquer registro policial.
Seguindo a longa trajetória, ela também foi orientada a ir até o consulado boliviano para que fosse verificado se havia algum documento originário. Welmo explica que esses documentos são fundamentais para regularizar a situação dela no Brasil, mas o consulado também não encontrou registros que possam ajudar.
Vamos entrar com uma ação na Justiça Federal pedindo um suprimento dos documentos pretéritos, que ela não tem para apresentar, e também que o juiz autorize fazer o registro nacional migratório dela”, conta o defensor.
A partir deste pedido, Welmo explica que o juiz pode autorizar a expedição dos documentos, finalmente garantindo os direitos e deveres brasileiros.
Justiça Federal Itinerante - Foi durante a ação da Justiça Federal Itinerante que a imigrante conseguiu ajuda para buscar sua cidadania. Juiz Federal e diretor do foro da seção judiciária de Mato Grosso do Sul, Ricardo Damasceno explica que o projeto foi iniciado na semana passada, em Corumbá.
“Era para ele ter iniciado em 2018/2019, mas tivemos a pandemia, que não possibilitou o início. Preparamos um caminhão com toda a estrutura de sala de audiência, atendimento de perícia e magistrados, e um gerador que mantém energia caso a localidade visitada não tenha eletricidade”, explica.
De acordo com o juiz, regiões em situação de vulnerabilidade e que dificultem o acesso da população ao Poder Público são selecionadas para receber a ação. A competência da Justiça Federal, teoricamente, se restringe ao atendimento na área previdenciária e assistencial, mas conforme relata Damasceno, “a ideia não é fornecer apenas esses serviços às pessoas, o trabalho de atendimento é para que as pessoas se tornem cidadãs”.
Por isso, outras instituições participam da ação, como a Defensoria Pública da União e o instituto de identificação de MS. Nesse sentido, pessoas que não possuem RG ou certidão de nascimento conseguem solicitar estes documentos.
Como foi o caso desta imigrante, que está há quase 40 anos no Brasil e não tem naturalização. Foram tomadas as providências para que ela consiga e que deixe de ser invisível, se tornando visível ao Estado”, Damasceno explica.
Novas ações da Justiça Federal Itinerante estão programadas para fevereiro, conforme relatado pelo juiz. “É para que pessoas que não tem como ir até o Poder Público recebam em suas portas o juiz, servidores e parceiros”.