Passeando pela História, magistrado nega indenização por danos da pandemia
Restaurantes pediram compensação por prejuízos provocados pela edição dos decretos que paralisaram atividades
Passeando pela Grécia de 460 a.C, Idade Média na Europa, Itália do século XVII e pela Espanha do século XX, o juiz da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos, Alexandre Corrêa Leite, negou pedido de indenização da Abrasel/MS (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de Mato Grosso do Sul) por supostos danos durante a pandemia de covid-19.
A associação acionou a Justiça em maio de 2021 pedindo indenização aos restaurantes e bares pelos “prejuízos provocados pela edição dos decretos que ensejaram a paralisação, suspensão e/ou restrição de atividades dos bares e restaurantes”, mas sem definir um montante específico, facultando ao judiciário essa avaliação caso houvesse entendimento de que houve, de fato, dano.
O magistrado, entretanto, decidiu que o pedido era improcedente e antes de emitir a sentença, apresentou entre os fundamentos, dados históricos que remeteram aos casos de febre tifoide, peste negra (bubônica) e gripe espanhola.
Em trecho da sentença, para julgar o mérito do pedido, o juiz começa dando um panorama das “pestes” que vitimaram a humanidade ao longo dos anos e começa com a febre tifoide. “TUCÍDIDES (ca. 460 a 455 aC – ca. 400 aC), general e historiador ateniense, descreveu com riqueza de detalhes os sintomas da peste que se abateu sobre Atenas do seu tempo, da qual ele próprio padeceu e sobreviveu. Hoje identificada como febre tifoide (...)”.
Em seguida, cita a Europa medieval, no período em que a peste negra ou peste bubônica, acometeu o continente. A doença “saltou” para os humanos de pulgas alojadas em ratos contaminados e “dizimou cerca da metade da população europeia no século XIV, sem prejuízo de surtos posteriores”.
Chegando no século XX, Leite relembra da gripe espanhola, “batizada com esse nome apenas porque foi na Espanha que a imprensa começou a noticiá-la com maior ênfase, despertando a atenção mundial até então monopolizada pela Primeira Guerra Mundial”, reforçando que ela “na verdade, é provável que tenha surgido em área rural dos Estados Unidos e depois transportada pelos soldados americanos à Europa e daí para o resto do Mundo”.
A peça evidencia ainda que o se chama hoje de quarentena “surgiu ainda na Idade Média, em Veneza, quando a cidade resolveu, como medida de saneamento, determinar que os tripulantes e passageiros de navios que atracavam no porto aguardassem na embarcação, por 40 (quarenta) dias, antes de desembarcarem”.
Citou ainda Daniel Defoe, autor do clássico Robinson Crusoé, que também escreveu “Diário do Ano da Peste”, acerca da grande epidemia que atingiu Londres em 1665, ceifando por volta de 97.000 almas. “No livro, misto de romance e de reportagem, Defoe cita decreto do então Lorde Maior de Londres, John Lawrance, que tratou de diversas questões sanitárias relativas ao combate à doença”.
Tudo isso para embasar a decisão que foi de entender o pedido da Abrasel improcedente e reforçou que em todas as situações, medidas sanitárias mais duras precisaram ser aplicadas, como “isolamento de doentes, interdições de casas, enterros dos mortos, proibição de circulação de materiais infectados, além de determinações sobre aglomerações sociais”, e até lockdown, em Roma, com o papa Alexandre VII (1599-1667), para combater a peste negra.
Economia – o magistrado entendeu que mesmo diante de pestes, “movimentos inspirados por razões econômicas e políticas, contrários às duras medidas em prol da saúde pública, estiveram continuamente presentes”, e avalia que isso é fruto da incapacidade humana a sofrer. “É natural do individuo a recusa ao sacrifício até o último instante, quando às vezes já é tarde demais”.
Sobre o pedido da Abrasel, Leite avalia que ainda que tenha havido efeitos econômicos e sociais adversos das medidas restritivas, do seu emprego equivocado e contraproducente em certos casos e de ocasionarem inconveniente dilatação do poder do Estado, “parece haver poucas razões para duvidar que o poder do Estado moderno inicial para impor medidas rigorosas de segregação através da quarentena tenha desempenhado um papel significativo e, talvez, decisivo na passagem da segunda pandemia”.
Justifica ainda que no decorrer da História, “as medidas contra a peste tiveram também uma enorme influência porque pareceram ser eficazes e forneceram fortes baluartes defensivos contra a doença. A reação das autoridades políticas e de saúde pública nos séculos posteriores é, portanto, compreensível”, citando trecho do livro Epidemias e Sociedade – da Peste Negra ao Presente, de Frank Snowden.
Por fim, defende que “é indisputável que o fechamento ou limitação do funcionamento de atividades empresariais para obstar a propagação de doença viral, como a COVID 19, fato imputado pelas autores aos réus, pode violar, facilmente, o direito de liberdade “que vale tanto para liberdade de ação quanto para a não-afetação de situações e posições do titular do direito fundamental”.
Assim,finaliza entendendo que “todos os valores (vida, saúde, liberdade, propriedade) devem ser sopesados, e não um deles sacrificado em homenagem ao colidente, sem critério de razoabilidade ou necessidade” e que “a grandeza da restrição deve corresponder à grandeza do fim a que ela destina, sem excesso ou exagero evidente”.