“CPF cancelado” tem festa nas redes, utopia de juiz e bangue-bangue da polícia
O ano foi marcado por confrontos também de ideias sobre a máxima de que “bandido bom é bandido morto”
“Parabéns aos policiais, mas poderiam ter cancelado mais uns CPF, não só dois. Esses aí logo vão estar nas ruas de novo, e do cemitério eles não conseguem sair”. A frase do leitor foi postada no Facebook ao comentar matéria do Campo Grande News sobre a morte de dois bandidos envolvidos na tentativa de furto ao Banco do Brasil.
O caso veio à tona no último domingo (dia 22). Na ação do Garras (Delegacia Especializada de Repressão a Roubo a Banco, Assalto e Sequestros), outros sete foram presos, mas para boa parte da sociedade, a política mais adequada para a segurança pública seria uma carnificina.
Se antes, o tema era voz dissonante, como quando o então governador André Puccinelli (MDB) prometia uma medalha para “cada bandido mandado para o inferno”, agora é voz corrente. A cada notícia de morte em confronto com a polícia, a reação na rede social é festiva.
Os comentários mais tradicionais são da ordem como “Menos um CPF”, imagens de fogos de artifício ou memes de crianças comemorando de forma efusiva. Quem não segue essa linha, como a leitora que reclama que ninguém pensa no sofrimento das mães, logo é orientado a levar o bandido para a casa.
Em 2019, o tema também foi abordado em entrevista ao Campo Grande News do juiz José Henrique Kaster Franco, que devolveu sua arma para a PF (Polícia Federal). Para o magistrado, o “confronto” policial é uma lógica ultrapassada. Segundo o juiz, a Polícia Militar no Brasil segue lógica de guerra, de inimigo, que não funciona para garantir segurança à população.
“A polícia é para lidar com o dia-a-dia da sociedade e não com a guerra, não é uma guerra que se tem. Na guerra a lógica que se tem é a do inimigo, é a de matar, de não ter lei, matar primeiro para depois pensar. A lógica da guerra do exército não deve ser aplicada às polícias, que deve ser uma polícia próxima da comunidade, ao lado, junto e não que às vezes causa medo na população”.
Sangue nas mãos - A reação dos oficiais da Polícia Militar veio por meio de nota divulgada à imprensa, com cinco páginas. A fala do juiz foi creditada como “romantizada, com notas de utopia, e desconexa com a realidade social do país, e do Estado de Mato Grosso do Sul”.
A Associação dos Oficiais Militares de MS aponta números nacionais de 2018, que mostram que mais policiais morreram por suicídio do que em confrontos durante o trabalho. O documento também cita déficit de pessoal e estrutura precária.
“Se há sangue sujando mãos de agentes públicos na barbárie cotidiana, também há sangue nas mãos governantes e de todos os que integram o Sistema de Justiça Criminal brasileiro”.
“Reiteramos nosso compromisso com a preservação da vida, entretanto, conservamos plenamente nossa capacidade de ceifá-la, daqueles que injustamente investirem contra a integridade física de policiais ou de inocentes, ainda que o romantismo do entrevistado não comporte este tipo de ação, nem mesmo quando necessárias à preservação de vidas inocentes”, diz a nota.
O risco do crime – Questionado sobre as efusivas manifestações quanto ao CPF cancelado e a sensação de que a segurança pública se restringe ao sentido de que o resultado seja a morte do autor do crime, o titular da Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública), Antonio Carlos Videira, cita que a população não aguenta mais a violência dos criminosos e destaca que a polícia de Mato Grosso do Sul é uma das que mais prende no Brasil.
“ Não vamos admitir um policial ferido ou morto por criminoso que vem vitimando muitos e muitos cidadãos. O policial tem que se valer dos meios necessários para reprimir a injusta agressão e se esta levar o criminoso à morte, é o risco que ele assumiu ao desafiar aquele que tem o dever de defender a população. A morte é o risco do crime”.
Matou pouco - Os discursos de ódio também ganharam menção neste ano em reportagem do Lado B, que questionou como sobreviver em 2020? Com o tema “Estado de Direito e Estado Mínimo: Os reflexos do crescimento de condutas de ódio e a luta pelas garantias constitucionais”, Isabella Kalil, doutora e mestre em Antropologia Social pela USP (Universidade de São Paulo), fez palestra em Campo Grande.
A pesquisadora mostrou como uma série de posturas, também nomeada como discurso de ódio, vai se materializando em ações muito concretas, que vão desde projetos de lei que atropelam os direitos humanos, até como a polícia faz uma abordagem.
“De tanto a gente entrar na criminalização da pobreza, na criminalização do funk, da favela e das periferias, a gente escuta pessoas comuns, que são relativamente boas dizendo, que a polícia matou pouco ou que mais um CPF foi cancelado”.