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Cidades

“O Estado vende ilusão”, avalia juiz “desarmado” sobre bang bang policial

“A lógica da guerra do Exército não deve ser aplicada às polícias”, comenta o juiz José Henrique Kaster Franco sobre a PM

Izabela Sanchez | 08/12/2019 07:48
O globo em cima da mesa, parte do espaço da sala onde hoje trabalha o juiz José Henrique Kaster Franco (Foto: Marcos Maluf)
O globo em cima da mesa, parte do espaço da sala onde hoje trabalha o juiz José Henrique Kaster Franco (Foto: Marcos Maluf)

O mundo na mesa e o mundo nas ideias. Assim parece ser o juiz José Henrique Kaster Franco, que atua na área cível, em Campo Grande, mas já portou arma, reflexo do temor de quem sentencia sobre o crime no Brasil. Chamou atenção de todo País depois de entrevista do Campo Grande News que contou a história de como e quando ele se desarmou.

Na sala onde trabalha hoje, no Cijus (Centro Integrado de Justiça), tem um globo em uma mesa, alusão às muitas viagens que já fez buscando entender as legislações que agem sobre o crime. Pós-doutor, é especialista em direito criminal (além do brasileiro, o italiano e o alemão) e defensor assíduo do direito como Ciência, com C maiúsculo.

Já sentenciou, durante muito tempo, em cima do bang bang da fronteira em Ponta Porã, a 323 km de Campo Grande. Enfrentou ameaças do PCC (Primeiro Comando da Capital) em Nova Andradina e encarou, por último, talvez o maior dos medos: entregou a arma que tinha para a Polícia Federal. Hoje, desarmado, respira longe das varas criminais

Do lugar onde está, avalia que o início e a ponta da história da criminalidade, em Mato Grosso do Sul e no Brasil, são uma comédia de erros: da origem do código penal (que nasceu do corpo fascista italiano) à ineficácia da lógica de confronto de policial matando bandido.

Ele entra em muitas polêmicas. Para o juiz que quase chegou a ser médico (interrompeu uma graduação em Medicina) prisões, por exemplo, devem ser como “cirurgias”, ou seja, a última das últimas opções. Foi escolha de Kater deixar as varas criminais. “Foi minha escolha e foi uma forma de respirar um pouco porque a parte criminal, além de exigir muito do juiz, ela massacra muito porque a gente lida, basicamente com a ineficácia do sistema. E gera muita frustração no juiz”, diz.

Para ele, ainda assim, atuar na fronteira foi a maior das lições sobre a lógica judicial brasileira. “Ensinou que a Justiça penal é seletiva. Mesmo na fronteira os grandes criminosos não eram pegos. A gente julgava só pequenos. Mulas e gente pequena. O que mostrou é que ali a seletividade aparece ainda mais porque o número de presos é muito elevado, então, ali, salta aos olhos que a Justiça penal, desde uma estrutura de investigação que inicia lá na hora a se descobrir o crime, não alcança aquele criminoso organizado, que não coloca a mão na droga, que às vezes está em outro país, às vezes está entrosado na comunidade”, relata.

“Você prende o último da cadeia, aquele que está vendendo uma droga na esquina. Isto é, a maioria das prisões aqui no Brasil não são feitas pela polícia civil, são feitas pela polícia militar em patrulhamento de rotina, prendem pequenos traficantes, muitas vezes primários, desarmados. É o último nível na escala criminosa. E acaba retroalimentando a criminalidade. Você coloca alguém que é pequeno no crime dentro do presídio, ele acaba saindo de lá devendo uma série de favores e um soldado a mais do crime”, emenda.

"Na guerra a lógica que se tem é a do inimigo, é a de matar, de não ter lei, matar primeiro para depois pensar", disse o juiz (Foto: Marcos Maluf)
"Na guerra a lógica que se tem é a do inimigo, é a de matar, de não ter lei, matar primeiro para depois pensar", disse o juiz (Foto: Marcos Maluf)

Soldados em guerra – Para o magistrado, a Polícia Militar no Brasil (correndo o risco da redundância, como o nome já nos anuncia ) segue lógica de guerra, de inimigo, que não funciona para garantir segurança à população. Não generaliza, ainda assim, e defende "os bons policiais que cumprem a lei".

“Então a nossa polícia hoje, ela obedece a uma lógica militar que está em completo desacordo com o que se vê no mundo. A polícia é para lidar com o dia-a-dia da sociedade e não com a guerra, não é uma guerra que se tem. Na guerra a lógica que se tem é a do inimigo, é a de matar, de não ter lei, matar primeiro para depois pensar. A lógica da guerra do exército não deve ser aplicada às polícias, que deve ser uma polícia próxima da comunidade, ao lado, junto e não que às vezes causa medo na população”.

Kaster analisa que essa prática só faz tombar, de um lado e de outro. Afirma que a sociedade no Brasil, ainda assim, praticamente não tem escolha ao pedir mais confronto: vive acuada pelo crime. No fim das contas, afirma, o Estado cria bons soldados e bons expectadores de filme de guerra e sai do foco ao não investir na própria estrutura da polícia e no progresso social, como um todo.

“É mais pra enganar a população, é mais para trazer uma falsa sensação que estão agindo. Ao invés de os políticos, ao invés do Estado atuar realmente na criminalidade. A começar pela contratação de policiais, treinamento, salário, treinamento adequado. Ao invés de fazer isso que é muito mais caro e demanda empenho do político, empenho da comunidade, efetivo das pessoas, eles vendem, às vezes, uma falsa ilusão de que estão agindo. Isso não é agir. Isso aí é ser tão violento quanto os próprios criminosos. E parte da população apoia isso até o momento em que vê um inocente preso, um inocente morto”, diz.

“Ninguém aprende a atirar na perna” – Para o juiz, declarações de responsáveis pelas ordens aos policiais, não condizem com códigos e representa um desvio. “Acho que uniformizar, nivelar, como se todos [policiais] fossem iguais não é uma solução boa. Eu conheço policiais muito bons, que seguem a lei, esses aí deveriam ser privilegiados pela instituição. Aquele policial que age por tortura, que mata, esse policial não segue as próprias normas da polícia, que essas não são as regras que ele deveria cumprir. Esse aí não é um bom policial e ele faz mal para a polícia. Essa regra não está escrita em nenhum código da polícia. Se ela existe é uma regra criminosa e aqueles que colocaram devem ser punidos”, diz.

“As normas das polícias não devem ser para matar ninguém porque isso acaba colocando em risco eles mesmos, porque se morre hoje alguém na rua, qualquer policial vira alvo de vingança, então nós temos policiais bons, que querem trabalhar a lei e temos maus policiais que acabam agindo, aparentemente no início, como heróis, e depois acabam mancomunados com organizações criminosas como supostamente se ouviu falar nos últimos meses aqui na cidade. Aquele sujeito que não cumpre as leis não é policial. Se as polícias não colocam eles pra rua estão sendo coniventes e tão criminosos quanto eles”, emenda.

"Existem bons policiais militares que atuam na lei. Mas existem os maus, agora a política da instituição não pode ser a de desobedecer nenhuma parte da lei", avalia (Foto: Marcos Maluf)
"Existem bons policiais militares que atuam na lei. Mas existem os maus, agora a política da instituição não pode ser a de desobedecer nenhuma parte da lei", avalia (Foto: Marcos Maluf)
“Não adianta mais uma polícia como há 50 anos, que só sabe prender quem está na rua, você precisa de polícia que desestruture o crime organizado", diz (Foto: Marcos Maluf)
“Não adianta mais uma polícia como há 50 anos, que só sabe prender quem está na rua, você precisa de polícia que desestruture o crime organizado", diz (Foto: Marcos Maluf)

Confronto já era – Kaster comenta que o “confronto” policial é uma lógica ultrapassada. “É uma lógica para iludir a população. Ao invés daquele que está administrando tomar medidas efetivas, ele toma uma medida ilusória que não custa dinheiro, barata, ao invés de tomar medidas de base, complexas, estruturais e que demandam realmente investimento”, dispara.

“A polícia tem que estar ao lado do povo, mas o que a gente precisa ter cuidado é para não generalizar. Existem bons policiais militares que atuam na lei. Mas existem os maus. Agora, a política da instituição não pode ser a de desobedecer nenhuma parte da lei. A política institucional da PM deve ser de estar ao lado do povo, não se pode admitir uma política institucional que não seja essa”, analisa o magistrado.

Crime, mais organizado – Kaster avalia que o Brasil se aproxima de uma realidade perigosa, onde o crime, cada vez mais, fica organizado. Para ele, investigação e inteligência são a resposta. “Cada vez mais demanda uma polícia que se organize na matéria de inteligência. A melhor forma de se enfrentar esse tipo de crime é, por exemplo, enfrentar o problema da lavagem de capitais”.

“Não adianta mais uma polícia como há 50 anos, que só sabe prender quem está na rua, você precisa de polícia que desestruture o crime organizado. Você precisa de uma polícia que acompanhe o grau de complexidade do crime. Polícias por uma deficiência estrutural as vezes falta dinheiro até para gasolina, elas não acompanham”, afirma.

A perda do valer a pena – “A maioria dos jovens não têm o que perder. Ir para cadeia ou não ir não faz diferença para quem não enxerga um futuro”. A frase do juiz sintetiza o que ele pensa sobre uo que considera um país que não oferece aparato social para a juventude, cenário onde a falta de opção faz com que o crime “compense”. Cenário que faz com que os mortos em confrontos policiais tenham 20 anos de idade, segundo ele.

“Aqui você está tirando a esperança do jovem. Quando chega alguém e oferece R$ 3 mil para ele trabalhar numa boca de fumo, adianta dizer para o jovem que não tem nada o que perder? É a perda da esperança e a perda do valer a pena. Tem que valer a pena ser honesto. Não adianta a gente querer exigir do jovem que ele cumpra a lei se a gente não dá para ele a chance de ser alguém na vida”, comenta.

Privilégios da classe, país da punidade – Provocado, o juiz avalia que o judiciário precisa, sim, avaliar os próprios privilégios. “Talvez porque colocar a culpa no judiciário seja mais fácil do que investir. Porque culpar os outros é fácil. Não estou dizendo que o judiciário não tem problemas. O judiciário tem que se aproximar mais do povo”, declara.

“Quando se fala em impunidade nós temos que pensar que nós temos 800 mil presos, uma das maiores populações do mundo, então seguramente nós não somos o país da impunidade, talvez nós sejamos o país da punidade. Daqui a alguns anos nós vamos ser o número um. Encarceramento nunca funcionou, se funcionasse a gente viveria em um país muito bom, com índices de criminalidade bem pequenos do que na realidade. O que diminui a criminalidade é investimento das pessoas”, avalia.

Tem que desarmar – Kaster é contrário aos projetos de armar a população e defende a manutenção do Estatuto do Desarmamento, aprovado no Brasil em 2003.

“Eu sou contrário. Completamente contrário, é mais um tiro no pé se não é um tiro no coração. A população está a mercê de cada vez mais gente armada e gente doida. Porque para comprar uma arma você precisa de meia dúzia de exames e certidões que não querem dizer nada, quantos que matam que não tinham nem um antecedente. Em briga de trânsito você não vai poder mais andar com seu carro na rua porque daqui a pouco vai vir algum maluco com uma arma na mão e vai dar um tiro no seu filho. A gente tem que diminuir o número de armas. Não defende ninguém, essa é a verdade”, finaliza o juiz.

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