"Heróis" da antiga rodoviária vivem a resistência há décadas
Memórias nostálgicas de um tempo marcado pelo movimento constante resistem na mente de quem escolheu permanecer no bairro Amambai
Vazio, com a maioria das portas fechadas, jogo de luzes brincam com a penumbra do prédio. Se o bairro Amambaí fosse um organismo, o prédio da antiga rodoviária seria, certamente, um coração. Nos últimos anos, no entanto, pulsa fraco.
No interior da estrutura, uma caminhada pode enganar os olhos de quem observa e fazer pensar que o “coração” já morreu. Aos poucos no entanto, algumas portas, as poucas que restaram no local, enviam a mensagem de que a antiga rodoviária ainda resiste.
Resiste ao abandono, à desocupação e ao triste cenário de vulnerabilidade social dos dependentes químicos que se aglomeram no local. É um coração que pede socorro, mas que não deixa de representar a persistência dos lojistas, que o mantém pulsando.
Hoje, o que relatam é carregado de nostalgia, uma saudade do tempo em que movimento incessante definia a rotina da antiga rodoviária.
“Meu nome é Alcenir, mas meu apelido é Cena”. Cena é, também, o nome do bar de Alcenir Mattoso, 72, que acompanha as alterações do prédio ao longo de 30 anos. Orgulhoso, ele afirma que o bar foi responsável por colocar as duas filhas na Universidade. Hoje, no entanto, mal dá para sobreviver.
“Eu vejo cada dia se acabando mais. A estrutura vai se acabando, tem vazamento pra todo canto, o dia que tentarem fazer alguma coisa não vai dar mais certo. Tem alguns [lojistas], por exemplo, aposentados. Se for pra sobreviver aqui ninguém sobrevive, é que tem outra renda por fora. É super difícil [permanecer no local] aqui ninguém faz nada por você”, conta.
“Isso aqui bombava”, lembra, saudoso. “Naquele tempo era o Shopping de Campo Grande”, afirma. Cena acredita que a saída para revitalizar o prédio só ocorre quando os lojistas se unirem. “Isso aqui é tudo particular, se todo mundo se unisse e arrumasse. É que ninguém tem união”.
Administradora do centro comercial – o nome do prédio da antiga rodoviária – Rosane Nely Lima aponta que nem só de piora vive o local. Para ela, à frente da administração há 4 anos, o local também teve progresso e lojas novas abriram. Ela também defende que a Prefeitura ocupe os 9% do prédio que são de responsabilidade da administração municipal.
“As lojas estão fechadas há 8 anos. A gente teve algumas fechadas, mas teve novas que abriram. O estigma é muito ruim. Ao poder público cabe a ele ocupar as áreas dele. Os imóveis desvalorizaram mais de 50%%. Ninguém quer investir no Amambaí. É uma região central que está totalmente desvalorizada”, comenta.
José Paulino, 76, viu muita coisa mudar de cenário. Isso porque ele é proprietário de uma loja de confecções há 42 anos. Entre os lojistas mais antigos, com comércios tradicionais como confecções e lojas de conserto, uma certa lealdade com clientes antigos é um dos segredos para continuar. José está no local “de teimosia”.
“Era muito bom, o movimento era muito bom, tinha muita gente. Mudou a saída da rodoviária, o povo saiu junto, agora só vem os clientes conhecidos da gente, mas muita gente não vem mais porque o pessoal passa na frente e acha que está interditado. Meu movimento caiu bastante, caiu no mínimo uns 80%, mas acho que foi mais, eu estou aqui de teimosia. Vamos ver o que vai acontecer”, relata.
A lealdade também motiva a cabeleireira Marina Ferreira, 49, que cortava o cabelo de um cliente de Bela Vista, cidade a 322 km de Campo Grande, na manhã desta terça-feira (6). Na rodoviária antiga, o salão de marina funciona há quase 20 anos. Antes, conta, não dava tempo nem de almoçar com tantos clientes.
“Tinha muito movimento, não tinha tempo nem de almoçar, era muito corrido, muito fluxo de gente. Agora não tem mais fluxo de gente. Eu continuo atendendo cliente, alguns que vêm, do interior, meus clientes daquela época permanecem comigo. É difícil [conseguir cliente fixo]. O movimento caiu muito”, declarou.
“Tinha que trazer uma universidade, um órgão público, da prefeitura ter espaço deles, ou o Detran, e que a prefeitura nos ajudasse a revitalizar, não só aqui, mas o entorno. Isso não prejudica só a gente, prejudica a vizinhança, os hoteleiros, restaurantes”, afirma.
Saul Danilson, 53, manipula o tempo enquanto assiste o tempo passar e mudar o dia-a-dia por 35 anos. Ele manipula o tempo porque conserta os marcadores do tempo, os relógios. “Você deve ter ouvido falar que aqui foi o primeiro Shopping de Campo Grande”, afirma, ao lembrar do tempo que já passou. “Nós somos chamados de Heróis da resistência”, conta, orgulhoso.
“Eu tinha bastante cliente, antes eu era funcionário, consertava relógio e tinha três vendedores aqui na loja. Hoje só eu trabalho e mesmo assim tem dia que ainda fico parado. A primeira coisa que tem que acontecer é o poder público criar vergonha na cara, porque hoje você pode reclamar com quem for, mas não tem autoridade para tirar eles [dependentes químicos] daí”, opina.
Hoje, emenda, só fica a saudade de uma época que não volta mais. “A memória é muito boa, a saudade é muito grande daquela época, na época que eu comecei a trabalhar, eu mantenho ainda meu trabalho porque tenho clientes daquela época, muitas vezes aquele cliente antigo aí vem o filho, ‘ah meu avô consertava relógio aqui, no interior todinho”.
A região também abriga uma série de hotéis antigos, ponto de encontro e passagem de quem visitava Campo Grande e chegava na rodoviária. Hoje, o cenário caótico da região espanta os clientes. É o que relata o trabalhador da recepção de um hotel, Celso Moreira Silva, 58.
“A mudança, acredito, foi pra pior, porque essas pessoas que estão aí carentes de assistência social, só aumenta, os hóspedes do hotel olham o ambiente e ficam questionando se é seguro ou não ficar no hotel, então traz uma série de complicações. Acaba perdendo porque já teve casos de pessoas que iam ficar uma semana aqui, mas acabaram não ficando. Porque as pessoas precisam sair pra comer etc”, comenta.
Há quem também arrisque começar um negócio no entorno do prédio, em meio a tantas dificuldades. É o caso do alfaiate Nadir Muller, 66, que há dois anos abriu uma alfaiataria.
“Eu vim do Paraná pra cá. É um problema isso aí, é mal comentado. Se tivesse uma boa melhora nessa rodoviária melhorava bem o comércio. O pessoal tem medo de deixar o carro, estacionar. Cliente chega aqui e está aqui e fica olhando pra fora. Esse ano deu uma caída boa, caiu bastante o movimento. Dá pra ir se virando, pouca coisa mas dá”, conta.
Paulo Roberto, 71, conta que “ganhou muito dinheiro” com a loja de confecções que está há 36 anos em frente ao prédio. “Naquela época era bom, ganhei dinheiro, agora está triste, cheio de drogado aí na frente, ladrão, não pode descuidar com nada. Cliente não existe nenhum, tudo que a gente faz aqui é pra fora da cidade. Não posso mudar porque aqui é meu mesmo, tem que ficar aqui. Está difícil”, revela.
Mas ainda há esperança no “coração” dos lojistas.
“A minha esperança é que mude. Só ficou a lembrança. Ficou um negócio difícil para o comércio, povo passa aqui tudo ressabiado, os amigos nossos vem visitar a gente, perguntam: ‘você não tem medo não?’. A gente tem que ter paciência e ver o que vai dar”.
A Prefeitura tem projeto para o prédio e tenta recursos junto ao governo federal, valores que podem chegar a R$ 15,5 milhões. A ideia é recuperar os 6 mil m² de área pública. Enquanto as ideias não saem do papel, os “heróis da resistência” mantêm o velho coração pulsando.
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