Crânio exposto choca mãe em cemitério onde filho está enterrado há 30 anos
Conservação é precária, mas Prefeitura tem convocado proprietários e familiares para adequação de jazigos
Oficialmente é São Sebastião, mas um dos tradicionais cemitérios de Campo Grande é conhecido como Cruzeiro. Apesar de histórico, o lugar é motivo frequente de denúncias da população, devido ao abandono. Crânios expostos em túmulos destruídos chocam quem depende do local para matar um pouco da saudade de quem foi embora.
“Está abandonado e sabe quanto ficou isso aqui? Pago R$ 4 mil. E agora que tem fazer as gavetas porque é obrigado a fazer as gavetas”, reclama Cícera Maria da Conceição, 72 anos.
A indignação é de uma mãe que criou três filhos sozinha e que depois de quase 30 anos, conseguiu fazer um jazigo ao único filho homem que teve, José Valdecir, e que morreu aos 23 anos, em decorrência de aneurisma.
Desde de 1993, dona Cícera aguardava a construção de um espaço digno para manter viva a memória do filho. “Não tinha condições, quem ganha um salário não consegue fazer. Tanto que todo este tempo estava no chão. Minha filha que me fez uma surpresa, porque se fosse por mim demoraria muito mais tempo”, desabafa a mãe, que ainda mantém a placa de identificação do filho fixada à cruz desgasta pelo tempo que antes estava fincada na terra.
O mais velho de Cícera, é um entre os mais de 35 mil corpos sepultados no Cruzeiro desde sua fundação e nem todo espaço recebe o mesmo cuidado. O Campo Grande News esteve no local e durante duas horas nas dependências do cemitério, constatou o estado de abandono, mencionado e até guiado por Cicera.
Já na entrada as cruzes de ferro extraviadas ou recuperadas de túmulos expostas no antigo prédio que abrigava a administração é ‘cartão de visitas'. Logo mais adiante, a primeira surpresa: um túmulo aberto com um crânio à mostra. “Isso porque não tem o ‘poção’, lá é ficava mais visível ainda”, lembrou outra visitante, Jussara Lemes Batista. 63 anos, que buscava o local onde foi enterrado o irmão, Antônio Cezar Lemes Batista.
Diferente de Cícera, Jussara afirma não ter condições de fazer a gaveta no jazigo da família. “Não tenho condições porque ainda estou pagando contas atrasadas que acumularam durante a pandemia, com água e luz”, lamentou.
O ‘poção’ à que ela se referia, é um espaço onde se concentram a maior parte dos sepultamentos sociais, na região que fica na parte de acima no interior do cemitério, onde eram depositados os restos mortais. Ali próximo, a reportagem presenciou tampas abertas e osso expostos. Embaixo de uma imponente árvore as placas que identificam o falecido e as respectivas datas de nascimento e de morte, estão cobertas pela vegetação e ao redor pedaços de caixão, provavelmente deteriorados pela ação do tempo, aguardam por remoção.
Chamamento – O Cruzeiro é um dos três cemitérios públicos de Campo Grande, juntamento com o Santo Amaro e Santo Antônio. Desde julho a Prefeitura tem feito uma convocação aos proprietários de jazigo ou familiares de enterrados para regularizar os túmulos em conformidade com uma normativa do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), de 2003.
A Resolução do Conama n° 335/2003 tem o objetivo de mitigar os impactos ambientais causados pelos recintos, como contaminação do solo. Para isso, os responsáveis pelos túmulos devem construir o modelo de concreto, chamado ‘gaveta’, para evitar que caixão entre em contato com o solo. Mesmo publicado em Diário Oficial para o chamamento, o responsável pela administração dos três cemitérios, Marcelo Fonseca, afirma que não há prazo para a regularização.
“Ainda não tem prazo, estamos fazendo uma convocação e orientando a população que tem condições de fazer. Legislação dos cemitérios é de 2001 e vamos ter que mudar para atender a resolução do Conama. Provavelmente não vai ser mais possível sepultar no chão por questão ambiental. Já deveria ter feito há muito tempo, sou totalmente favorável. Não é só Campo Grande, é uma orientação nacional, mas que atrasou devido à pandemia. Tivemos infelizmente de sepultar no solo em decorrência da quantidade de óbitos”, disse Marcelo, salientando que em dois meses cerca de 50 jazigos do Cruzeiro já foram regularizados.
Os estragos – Em relação aos consertos dos túmulos abertos e conservação do espaço público, o administrador informou que a limpeza compete à Sisep (Secretaria Municipal De Infraestrutura E Serviços Públicos) e que a equipe no local realiza o trabalho esporádico de reparos quando possível devido ao baixo número de funcionários. Já a falta de segurança ele é taxativo. “Isso aí um trabalho que nunca termina, além do tamanho físico ainda há falta de segurança nesses cemitérios, não adianta a gente tapar o sol com a peneira, porque os muros são baixos. Todos eles são muito grandes e à noite não fica ninguém e existe uma ação imensa de vândalos nesses cemitérios quebrando túmulos, furtando algumas coisas. A gente está continuamente recuperando isso daí. Agora, isso na medida do possível porque nossa equipe é reduzida e é para sepultamento. Conforme vai tendo disponibilidade e horários vagos eles [funcionários] vão tapando os túmulos que vão encontrando. Agora, os túmulos são titularizados, então cabe à família também estar esporadicamente indo aos cemitérios e verificando a situação desses túmulos. Muitos abandonam”, finalizam.
A justiça - Em julho o Ministério Público de Mato Grosso do Sul pediu a interdição do Cemitério Santo Antônio, na Vila Santa Dorotheia, por poluição ambiental, conforme publicou reportagem do dia 21 no Campo Grande News. A sentença de 2019 obriga a Prefeitura de Campo Grande a reparar danos ambientais e de licença de operação do local.
Pelo cronograma municipal apresentado na ação de cumprimento de sentença, a notificação a familiares dos enterrados – para que adequem os jazigos – terminaria em 21 de fevereiro de 2023. Ja o monitoramento ambiental dos sepulcros, com análise se há materiais sendo lançados ao solo, começariam em outubro deste ano e o último seria apresentado em abril de 2027.