Lugares que falam muito da gente ocupam só 2 páginas no guia de Campo Grande
Turismo histórico cultural não é valorizado e foi se apagando ao longo de 121 anos
Vai me ver com outros olhos ou com os olhos dos outros?
A provocação do poeta Paulo Leminski abre matéria de aniversário dos 121 anos de Campo Grande para destacar lugares que poderiam ser pontos turísticos se a cidade prezasse mais por sua história.
Realidade sintomática é mostrada no Guia de Informações Turísticas de Campo Grande, disponível na página da Sectur (Secretaria Municipal de Cultura e Turismo) na internet. Das 30 páginas, quase metade vai para o turismo gastronômico. Leia-se: “comer, comer”.
Já o turismo histórico cultural ocupa duas páginas. Por lá, não se encontra, por exemplo, a rotunda, resquícios da ferrovia, trilhos que foram determinantes para escrever a história da vila que chegaria à Capital.
Parte do patrimônio dos tempos do trem foi revitalizada, mas a construção, na Rua 14 de Julho com a Eça de Queiroz, atravessa anos à espera de recursos.
O local segue muito visitado por pombos e fotógrafos. Mas passa longe de atrativo turístico. Na entrada do terreno, a recepção é feita por entulhos e lixo, que inclui de pares de tênis a chinelo.
Pelas gigantes janelas, encravadas na parede de tijolo aparente, se espia uma estrutura envelhecida onde funcionava a oficina dos trens. Muitas telhas estão quebradas, a maioria levantada pelo vento forte, esse clássico do mês de agosto em Campo Grande.
A rotunda fica um pouco à frente, a estrutura circular que posicionava o trem, que poderia ser virado com sentido a Corumbá ou Bauru (São Paulo). Mas é nos olhos de Valdomiro Souza Brandão, 66 anos, que a estrutura da NOB (Noroeste do Brasil) se enche de cores e de gente. O relato é de um passado com mais de 600 pessoas trabalhando.
“Hoje dá tristeza. Tudo acabado e acabando cada vez mais”, lamenta Valdomiro, que por 23 anos trabalhou na ferrovia. O começo foi como braçal, limpando trilhos e cortando mato. O último posto antes da aposentadoria foi de condutor de auto de linha, levando engenheiros e funcionários trilho afora.
Na Mato Grosso com a Calógeras , uma Maria Fumaça homenageia o passado. Mas em frente ao monumento, o Hotel Gaspar fechou as portas depois de 66 anos de história. Antes do fim, a invisibilidade.
O edifício que hospedou presidentes sumiu do cenário turístico de Campo Grande. O Hotel Gaspar foi riscado do mapa que lista e localiza 46 pontos da Capital que o turista “precisa descobrir”.
Morando no coreto – Encravado entre dois pontos devidamente marcados como turístico – a Cabeça de Boi e a Praça das Araras -, o coreto no bairro Amambaí virou morada para Jeferson Siqueira de Souza, 30 anos. Ele conta que é natural de São Paulo, mas chegou a Campo Grande vindo do Paraná.
O atual endereço turístico foi fruto da necessidade. Jeferson chegou a ser acolhido em uma escola, destinada a pessoas em situação de rua. Porém, voltou a perambular impulsionado pela dependência de álcool e outras drogas. “Mas aqui é bom demais. As pessoas são boas”, diz. O coreto é tradicional, mas não está nos planos de melhoria pelo poder público.
Do outro lado, a Praça das Araras chama a atenção pelas aves típicas dos céus de Campo Grande. Mas, caso se queira saber mais detalhes, vai ser preciso entrar no Google. Não há nenhuma placa explicativa sobre o monumento.
O Amambaí é o bairro mais antigo da cidade e tem até um dia só para si: primeiro de dezembro. Mas falta enxergá-lo como atrativo turístico, a exemplo da situação do coreto, que está na Praça Cuiabá desde 1930.
A praça é ponto de passagem diário para Noel Isidoro da Silva, 58 anos, que leva frutas para abastecer um ponto de venda. “O pessoal gosta muito daqui, é um lugar bonito”, diz Noel, mais conhecido como Mineiro. Ele mora no Caiçara, onde não encontra uma praça como a do Amambaí.
O bairro que se aproxima dos 99 anos também guarda muitas portas fechadas no comércio. Na contramão foi Edilson de Paula, que abriu uma loja de refrigeração há quatro meses, em plena pandemia.
A aposta é de que virão novos verões. Mas a escolha do ponto teve o peso da tradição. “A Marechal Rondon é a rua da refrigeração. Se vai comprar em uma loja e não tem, já procura outra”, diz.
A proximidade com a Praça das Araras simplifica a localização. O ponto de referência facilita encontrar o número 105 da Dom Aquino.
Um olhar para o futuro – Titular da Sectur, Max Freitas vê em expansão o turismo na área rural e o de aventura, mais presente na zona rural do município. Para a rotunda, o verbo segue sendo esperar.
No caso, recursos de R$ 2 milhões de emenda parlamentar. “Tem o projeto, mas estou aguardando a liberação de emenda parlamentar. Para que futuramente se transforme num atrativo”, afirma Max Freitas.
Já a Praça das Araras será revitalizada, com limpeza, pintura e uma placa para o monumento, assinado por Cleir Ávila. Para o coreto, não há recurso previsto. “Infelizmente, a maioria dos monumentos são vandalizados. A população precisa pegar o hábito de conservar sua história”.
Pertencer - Na Avenida Afonso Pena, de arquitetura sisuda e cinza, o Sesc Cultura também precisa vencer uma certa resistência, muita gente tem dúvida se o acesso é livre numa área que sempre foi do Exército. O espaço cultural foi aberto em 2018 e a aposta foi em oferecer variadas atividades para formar um público. Antes da pandemia, a média diária era de 115 visitantes.
Datado de 1922, o imóvel abriga o Museu do Exército, biblioteca, cinema com 28 lugares, galeria de artes visuais, sala de musica com piano de cauda, sala de dança, laboratórios de artes visuais.
“O grande desafio é as pessoas ocuparem o espaço. Ele vinha em crescente de público até 2019. As pessoas verem como algo de pertencimento da cidade. Acredito que tenha conteúdo para mais páginas. Se você divulgar os espaços e falar o serviço que oferece”, afirma Andreia Simone Gomes da silva, gerente do Sesc Cultura, ao comentar as duas infímas páginas elencadas como turismo histórico de Campo Grande.