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"Viagem" no tempo mostra os desafios de Campo Grande em anos distantes da covid

"Saltos temporais" de 33 anos trazem de volta a Campo Grande de 1987 e de 1954, épocas de desenvolvimento e nostalgia

Silvia Frias | 26/08/2020 08:30
"Viagem" no tempo mostra os desafios de Campo Grande em anos distantes da covid

“A diferença entre passado, presente e futuro é somente uma persistente ilusão” — Albert Einstein

2020 tornou-se o ano do inimaginável. Foram pouco mais de 50 dias da antiga normalidade até que o Brasil entrasse na crescente lista mundial dos países atingidos pela covid-19, vírus capaz de praticamente parar o tempo. Hoje, data em que se comemoram os 121 anos de Campo Grande, a reportagem se propôs a olhar o ontem e descobrir quais foram alguns dos desafios enfrentados na cidade em outras épocas, quando não se vivia em compasso de espera, mas, sim, em busca do desenvolvimento.

Como parâmetro, a escolha foi adotar ciclos de 33 anos, referência que encontra ressonância em tempos atuais por conta da série alemã Dark, em que a história dos personagens se cruzam nos anos de 2019, 1986 e 1953. O número tem força simbólica em outras esferas: Jesus Cristo tinha 33 anos quando foi crucificado. Na Maçonaria, é considerado o mais alto grau que um integrante pode atingir.

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Desinfecção do Aeroporto de Campo Grande, em abril deste ano (Foto/Arquivo: Silas Lima)

O que se passa em Campo Grande em 2020 é de conhecimento geral: a pandemia do novo coronavírus  impôs medidas sanitárias como toque de recolher, além de  restrições que causaram polêmica, como a suspensão da venda de bebidas alcoólicas, o fechamento do comércio, bares e restaurantes e outras que ainda vão nos acompanhar, como uso de máscaras, álcool em gel e distanciamento social. Até agora, são 19.595 casos confirmados da doença e 310 mortes na cidade.

No primeiro pulo temporal, a Campo Grande de 1987, assim como resto do mundo, tentava entender e combater a Aids, doença que até aquele período havia atingido 2.775 brasileiros, segundo dados do Ministério da Saúde.

Foi naquele ano que o governo federal adotou o AZT, medicamento que reduzia a multiplicação do vírus no organismo. Também foi quando a Assembleia Mundial de Saúde instituiu o 1º de dezembro como Dia Mundial de Luta contra a Aids e foram adotadas políticas públicas para desvincular a doença de grupos específicos.

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A antiga passarela da Rua Barão do Rio Branco (Foto: Roberto Higa)

Em consulta a publicações da Arca (Arquivo Histórico de Campo Grande) e jornal diário (Correio do Estado), outras preocupações também povoavam o pensamento da população: era o período de altos índices inflacionários, variando de 4,87% a 21,45%, e que fechou com média acumulada de 218,52%; o usuário do transporte coletivo se adaptava ao decreto municipal instituído em janeiro que proibia o fumo dentro dos ônibus e as mães dormiam nas filas das escolas para garantir vaga para os filhos.

Na administração pública, foi o ano da criação do CMDU (Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbanístico) e da Planurb (ex-Instituto Municipal de Planejamento Urbano de Campo Grande, atual Agência). O diretor-executivo da época, Ângelo Arruda, disse que foram essenciais para iniciar as mudanças da lei de uso do solo, até então, delimitadas no plano elaborado em 1977 por Jaime Lerner.

“Tinha muita coisa para se resolver”, lembra Arruda. Na lista, zoneamento urbano, a formação dos corredores de transporte, a ocupação dos espaços e solução para as favelas, mais de 100 registradas pela administração. O calçadão da Barão do Rio Branco, que não foi totalmente executado, entrou na discussão, mas não chegou a ter solução definitiva. As passarelas e os trilhos foram retirados, mas até hoje a rua nunca se tornou passagem única para pedestres.

Na época, outro calçadão entrou na pauta de discussão. O da Rua 14 de Julho, que chegou a ter aceitação da Associação Comercial em 1987, desde que se criassem atrativos para população.

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Rua 14 de Julho, entre avenida Afonso Pena e Barão do Rio Branco (Foto/Arquivo: Arca)

Ângelo Arruda se recorda que o debate voltou à tona poucos anos depois, no segundo mandato do prefeito Juvêncio César da Fonseca, porém, na audiência pública, os comerciantes foram contra o projeto. “O Juvêncio tinha assegurado recurso, mas, como a associação não quis, o dinheiro foi para o Horto Florestal”, referindo-se à urbanização da área.

No retorno ao presente, pergunta-se: o que o passado deixou de herança para o futuro? Para o arquiteto, há uma pendência recorrente e ainda sem solução.

“Era tema central em 1987, continua central em 2020 e vai continuar sendo: o que fazer com os vazios urbanos? Os municípios correm atrás de pagar contas, de pagar a folha de servidores”.

Umbigo enterrado – Em mais salto temporal, chegamos a Campo Grande de 1954, pertencente ao antigo estado uno de Mato Grosso. Foi o ano da inauguração do Colégio Estadual Campo-grandense, atual Escola Estadual Maria Constança Barros Machado, prédio projeto por Oscar Niemeyer. Também foi inaugurada a pista de concreto do futuro aeroporto de Campo Grande.

Em maio, um menino de 11 anos morreu após ser mordido por cão hidrófobo (raiva), o que teria desencadeado ação da prefeitura de recolhimento massivo dos animais de rua. Em junho, forte chuva derrubou muro do colégio Osvaldo Cruz, situação que ainda se vê pela cidade durante os temporais.

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Colégio Estadual Campograndense, inaugurado em 1954 (Foto/Arquivo: IBGE)

No mês seguinte, a queda de avião que tinha acabado de decolar do Aero Club matou três pessoas, acidente que foi presenciado por Naim Dibo, sogro do piloto. Na economia, discutia-se o aumento de 100% do salário mínimo, o que foi instituído, passando de 1,2 mil para 2,4 mil cruzeiros.

Mas foi em agosto que a política nacional provocou o abalo que transformou 1954 e os anos subsequentes: o suicídio do presidente da República, Getúlio Vargas, ato nascido de pressão econômica, forças contrárias ao governo e culminando no atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e morte do major Rubens Vaz.

 A efervescência política passou despercebida pelo menino Grimaldo, de 8 anos, que já trabalhava no bolicho perto do Portão de Ferro da Fazenda Bandeira, na Avenida Bandeirantes, principal via da época de saída para propriedades da região de fronteira. “Eu já tinha responsabilidade, trabalhei muitos anos ali”.

Ao falar do passado, o representante comercial Grimaldo Macario da Cunha, 73 anos, faz questão de fincar suas raízes em Campo Grande. “Nasci na Rua Brilhante; batizei, crismei tudo na Igreja Perpétuo Socorro, sou da terra, sou do tempo de Mato Grosso. Acho que minha mãe deve ter enterrado meu umbigo aqui, por isso que não saí”, sentencia, risonho.

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Casal mata saudade dos filhos, netos e bisneto pelo celular (Foto: Kisie Ainoã)

As memórias vão além de 1954 e se estendem pelas décadas de 1960 e 1970. Grimaldo fala das charretes atoladas na avenida Bandeirantes. “Toda vez atolava, a rua era de areia”, das corridas de cavalo perto da figueira da rua Alexander Fleming. “Sempre morria gente, corrida dava briga, né?”, das pescas de lambaris no córrego na região do Taquarussu, das caçadas de lebre com a gurizada, dos shows da dupla Délio e Delinha que corria para ver nos bares da cidade. “Eles estavam começando, cansei de assistir nos fins de semana” e da prisão da Bruxa da Sapolândia, a mulher acusada de matar crianças. “Vi carro de reportagem passando, fui atrás, tava lá, ela sendo presa”.

Sem sair do bairro, contribuiu para a expansão de Campo Grande. Jovem, trabalhou na Cemat, antiga empresa de energia elétrica de Mato Grosso, andando de bicicleta até chegar no trabalho. Aos 16 anos, já era dono de dois terrenos. “Um era lá no Santa Luzia, era o fim do mundo”. Casou duas vezes, é pai de 4 filhos, tem 7 netos e um bisneto.

Mesmo após aposentadoria, nunca parou. Desde que se aposentou da Cemat, trabalha como representante comercial e viajava pelo Estado, até a chegada da pandemia. “Nunca vivi isso, morreu tudo, parou tudo, dessa vez a coisa pegou feio, essa é de tirar o pica-pau do oco”.

Grimaldo adaptou-se e passou a usar mais a internet, discutindo vendas por videoconferência. “Pessoal tá reaprendendo a trabalhar de outra maneira, é dificuldade tremenda, é diferente dos jovens que nasceram com isso na mão, mas estamos aprendendo, sobrevivendo”.

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Gladis e Grimaldo no trabalho, agora, em casa (Foto: Kisie Ainoã)

A vida dividida entre trabalho e diversão é usufruída ao lado da esposa, Gladis, 58 anos, com quem vive há 37 anos. Eles gostam de dançar e de  festas, neste momento, prazeres restrito por conta da pandemia, mas não extinto. A música e a dança fazem parte do cotidiano deles.

Enquanto vivem, passam o tempo, tema que costurou essa reportagem. Se Einstein abre este texto com interpretação poética sobre a relatividade é o campo-grandense Grimaldo quem dá sua versão final sobre o tempo.

“Tem que aproveitar todos os minutos da vida, por que passa muito rápido. Às vezes você pensa em se aposentar para ir para beira do rio, mas aí espera, espera e morre. Tem vontade de fazer alguma coisa faça, ainda mais agora nessa pandemia. E se eu morro amanhã? Tempo é o mais precioso que tem, tem que aproveitar para o bem”.

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A dança, diversão que mantém-se mesmo em tempos de isolamento: "Tem que aproveitar" (Foto: Kisie Ainoã)


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