Vivendo com problemas, comunidades são ainda mais afetadas por chuvas
Inmet registrou aumento de 66% no volume pluviométrico e excesso de chuva causou transtornos
Os impactos da crise climática registrados em Mato Grosso do Sul são sentidos na pele por comunidades vulnerabilizadas. Eventos extremos são cada vez mais frequentes, as variações na quantidade de chuva na região e as estruturas as quais são submetidas essas populações colocam centenas de famílias num campo de violações de Direitos Humanos.
Dados divulgados pelo Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) mostram que os dois primeiros meses de 2023 já registram um aumento de 66% no volume de chuvas em Campo Grande se comparado ao período anterior. Conforme boletim divulgado no dia 8 de março, os 242,2 mm de chuva que caíram somente em fevereiro ficaram acima da média para a estação, que é de 176 mm.
Com 33 córregos que recortam o município, esse grande volume de água tem provocado muitos transtornos na capital sul-mato-grossense e o impacto é maior ainda às comunidades que já vivem em localidades marginalizadas, como na aldeia indígena Água Funda, que fica no Bairro Noroeste.
A área nos fundos da região leste de Campo Grande, já na divisa com a área rural da cidade, continua com as mesmas árvores. Um grupo de cinco famílias indígenas da etnia terena se reuniram no dia 3 de junho de 2017 no local e decidiram ocupar o lugar.
Com dificuldades para pagar o aluguel, o grupo decidiu fazer da área de pasto, metade de propriedade privada e outra da prefeitura, um lar improvisado. Passados mais de cinco anos, o local abriga 92 famílias, que somam cerca de 400 pessoas, dividindo espaços entre tábuas, vielas e plantas.
Segundo o cacique do território que ganhou o nome de Aldeia indígena urbana Upênoty Uné (Água Funda), Ivaneis Gonçalves Moreira, 48 anos, o grupo manteve a cultura de não destruir a mata. “Isso é do nosso povo, estar sempre preservando. Assim temos sombra e até pé de guavira nativo”, conta.
Ele nasceu na Aldeia Taunay Ypegue, em Aquidauana, e teve que vir para a Capital estudar. Hoje é formado em letras e é professor. Trabalha em uma escola pública com educação especial.
“Estamos preocupados com a nossa situação. Já foi aprovado na semana passada a desapropriação dessa área para a construção de um mini anel, onde estamos. Espero que olhem a nossa situação de vulnerabilidade”, disse o cacique.
A vice-cacique Luciana da Silva Laurindo, 26 anos, mora em um dos barracos que possui duas peças improvisadas, com um ‘banheiro’. Dividem o espaço ela, o marido e dois filhos. O quintal é espaçoso e abriga sete cachorros. Os vizinhos são irmãos, a mãe e concunhados.
Com o tempo, os indígenas aprenderam a driblar as dificuldades das intempéries naturais que danificam os barracos locais. Com as chuvas dos últimos anos, as famílias se sentiram ainda mais “ilhadas”. Não só pela distância do centro da cidade, mas pela água que acumula em meio ao chão de terra, deixando a comunidade sem chances de sair dos barracos.
“Nesses cinco anos, a Defesa Civil veio aqui apenas uma vez e entregou lonas pretas que são muito frágeis”, lamenta Luciana. Ela conta que a mãe que mora no barraco da frente não consegue sair por vários dias, até a água baixar.
A vizinha Claudiene Pereira Jorge, 30 anos, divide um barraco com cinco pessoas. Depois de já perder televisão e ver a casa toda úmida, decidiu colocar uma lona grossa sobre a telha de cimento e fibra sintética. “Assim, quando chove, não molha tanto lá dentro. Essa chuva toda é porque muita gente desmata. Isso desequilibra a natureza”, explica.
Durante uma caminhada entre os barracos, numa manhã bem quente, é possível ver mulheres tomando tereré (bebida feita com a infusão da erva-mate em água fria), embaixo de sombras de árvore. “À noite dividimos o único ventilador que temos. Mas de dia, o jeito é colocar as crianças dentro de balde d’água”, conta a vice-cacique.
Apesar dos barracos cinzas, em ruas de terra, é possível ver muito verde entre as moradias. Culturalmente, os terenas plantam bananeiras, árvores frutíferas na terra e toda diversidade de flores em qualquer pequeno recipiente improvisado. Tem barraco que até mesmo um pé de maracujá tomou conta da estrutura e formou um telhado verde, deixando a estrutura interna mais fresca.
Vale lembrar que os povos originários da etnia terena são os últimos remanescentes da nação Guaná no Brasil. Desde a década de 1760, eles lutam contra a invasão dos espanhóis que queriam tomar o território por conta da proximidade com o Rio Paraguai. Os processos migratórios dos grupos tradicionais nunca cessaram. Fatos históricos fizeram com que essa população buscasse refúgio na cidade nas últimas décadas, se submetendo às dificuldades de moradia.
Vidas molhadas - A quase 25 quilômetros dali, Paula Correia e sua família espelham nas poças d’água uma vida muito parecida com a dos indígenas da Aldeia Água Funda. Com os quatro filhos e o marido, ela é uma das moradoras mais antigas do que se convencionou chamar em Campo Grande de “Alfavela”, um conjunto de aproximadamente 100 moradias ao lado do Bairro Portal Caiobá.
Liderança do local, ela relata que as tempestades do verão sempre trouxeram imprevistos, porém, as dos últimos anos têm aumentado a insegurança e provocado muita destruição . “Usamos sobras de materiais de construção e lona para montar nossas casas. A gente sabe que não aguenta muito, que se chover demais a água entra, molha e depois tem que esperar secar. Mas antes não levava tudo, como hoje. Não destruía tanto as nossas coisas”, reflete.
Na região, a moradia dela está entre as mais afetadas pelo forte temporal registrado em fevereiro deste ano. Os estragos foram tantos, que até hoje, dois meses depois, a família se recupera das perdas.
“Eu estava em casa com meus filhos, eles estavam assistindo TV e eu vi o tempo mudando, com nuvens mais pesadas, fui guardando os brinquedos e os calçados para dentro. Só que o vento chegou com tanta força, que derrubou nosso barraco, inundou a casa e eu só tive tempo de sair correndo com eles para a casa da minha mãe. Foi muito rápido, tudo foi voando, caindo, indo embora e eu só conseguia pensar em correr e proteger as crianças”, recorda.
Na Rua Carangola, que no dicionário remete à abundância, a moradora e o marido, pedreiro, reorganizam a vida aos poucos e com ajuda. “Nós recebemos doações de roupas, alguns móveis e até materiais de construção. Mas também tem a preocupação da saúde dos meninos. Eles têm entre 1 e 11 anos de idade e estão sempre resfriados, gripados, toda semana estou no hospital. Tivemos de dormir muitas noites com o colchão molhado e aqui é bem úmido”, diz desapontada.
Emergência Climática no Centro das Discussões - Paula é uma das 36 mil mães atendidas pela Central Única das Favelas de Campo Grande (Cufa CG) e o problema enfrentado na favela onde ela mora, com a crise climática, tornou-se recorrente em outras comunidades, de acordo com a coordenadora Letícia Polidorio.
A campanha de arrecadação de alimentos para a ceia de Natal de 2022 mal tinha encerrado quando a Central teve que mobilizar, de forma emergencial, a doação de colchões, cobertores, roupas, calçados e comida a centenas de famílias, no dia 5 de janeiro.
“Foi a primeira forte chuva que caiu na Capital este ano. Fiquei assustada com os pedidos de ajuda que começaram a chegar no meu celular. Não apenas no meu, mas no de várias lideranças das favelas e dos membros da Cufa. Do dia para a noite, as mensagens por texto, áudio, telefonema não paravam. E as imagens mostravam um cenário devastador, com barracos derrubados na lama, brinquedos das crianças sendo levados, panelas, comida, animais, todos no chão, na enxurrada, indo embora”, relembra emocionada.
Lívia Lopes, coordenadora da Cufa Mato Grosso do Sul (Cufa MS), destaca que a questão climática tem ocupado tanto o centro das discussões da Cufa nos últimos dois anos, que a Central passou a realizar pesquisas voltadas ao tema para compreender como ajudar as comunidades de forma mais assertiva.
“Os casos já chegam em uma determinada condição de perda total de casas, objetos e de agravamento de doenças, como resfriados, pneumonias, que percebemos que as questões estão interligadas. Quando fomos avaliar nos relatórios, é muito claro que antes quando chovia era muito uma questão de roupas por conta do frio, calçados e cobertas. Nos últimos anos, não, são chuvas fortes, os lagos e rios transbordam muito rápido e os moradores perdem absolutamente tudo", diz a liderança.
A psicóloga e gestora de projetos da Cufa CG, Tatiana Samper, destaca que, conforme as pesquisas iniciais realizadas pelo grupo, esse aumento não é um mero acaso.
“Podemos afirmar que é uma das consequências do desenvolvimento de atividades produtivas que priorizam somente a economia, em detrimento da qualidade da vida humana, como o bem-estar e a felicidade. Os maiores impactos disso são sentidos, primeiro, pelo meio ambiente com as mudanças climáticas e, consequentemente, pelas pessoas que estão em áreas já precarizadas da cidade e da urbanização, ou seja, pessoas negras e indígenas”, detalha a pesquisadora.
Samper contextualiza, ainda, como a crise climática agrava os abismos sociais provocados pelo processo de formação de favelas no Brasil e também em Mato Grosso do Sul.
“O processo de favelização no país ocorre em decorrência da abolição da escravatura que não teve um planejamento social. Essas pessoas, os escravos, ficaram sem ter para onde ir, recorreram aos locais marginalizados e passaram a formar favelas. No caso do Mato Grosso do Sul, com a divisão do Estado em 1979, vemos um êxodo rural muito forte acontecer. A cidade de Campo Grande passa a ser uma capital de oportunidades e a atrair muitas pessoas que, mais uma vez, não têm aonde ficar e, logo, começam a formar as favelas”, detalha.
O grupo avalia, ainda, o quanto as mudanças climáticas impactam na produção de grãos com o aumento no preço dos alimentos e, consequentemente, na insegurança alimentar.
“De modo geral, temos realizado mais campanhas de arrecadação que antes da pandemia. Em 2021, por exemplo, um ano muito difícil em relação à alimentação, ao acesso à cesta básica, nós conseguimos arrecadar e distribuir 46 toneladas de alimentos na Capital. Mas são 39 favelas, então, é um desafio enorme atender todas as famílias e todas as suas necessidades. Necessidades, estas, que têm origem ou estão sendo agravadas com a crise climática”, afirma Lívia Lopes.
A ausência de respostas e alternativas que resolvam estes casos, por parte do poder público, tem motivado as integrantes a buscar soluções com iniciativas privadas, além de manter as arrecadações. “Realizamos, no ano passado, uma campanha de arrecadação de materiais de construção que marcou nosso grupo porque muitos barracos foram destruídos e tivemos a colaboração de algumas lojas e depósitos. Estamos avaliando, seriamente, em manter essa campanha em fluxo contínuo, já que quase todos os meses temos de lidar com essas emergências”, conta Polidorio.
Direitos - Segundo a advogada com pós-doutorado em meio ambiente, Giselle Marques de Araújo, o município de Campo Grande tem a obrigação legal de atender essas famílias e priorizá-las.
“Se não está fazendo isso, age em desrespeito ao disposto no Art. 182 da Constituição Federal, que diz: ‘A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes’”, justifica.
A orientação é que essas populações se organizem em coletivos para exigir do poder público municipal a implantação de políticas sociais que garantam seus direitos. “Podem procurar a Prefeitura, a Câmara Municipal e o Ministério Público. Quem luta em conjunto tem melhores resultados”, complementa.
Giselle também ressalta que o artigo 225 diz que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, e impõe ao poder público o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
“Estados e Municípios que não adotem medidas direcionadas a um clima equilibrado, desrespeitam a Constituição. Esse dever, no entanto, não é só do Estado, mas de toda a coletividade. Ou seja, é também de quem está lendo esta matéria”, pontuou.
Resposta - A Amhasf (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários) informou que a comunidade Água Funda está em processo de atendimento pela Diretoria de Regularização Fundiária. “Todas as famílias já foram cadastradas e, a partir do cadastro, a demanda de lotes foi estabelecida”.
Segundo a agência, as áreas públicas na região não podem ser ocupadas somente para fins de habitação e estão em processo de estudo de viabilidade. Além disso, existem mais de 20 áreas em processo de estudo ou regularização na Capital. Dentre elas, as áreas atendidas pela Cufa CG.
“Não se trata apenas de reassentamento, pois o município precisa oferecer condições plenas de habitabilidade, como por exemplo o acesso à água e energia elétrica regulares. Os ocupantes precisam aguardar a finalização dos trâmites desse processo. Todos serão comunicados pela Amhasf sobre as próximas etapas de atendimento”.
*Esta matéria contou com a colaboração da jornalista Carla Gavilan.
*Este conteúdo foi produzido com apoio do programa Jornalismo e Território, da Énois Laboratório de Jornalismo. Para saber mais, acesse www.enoisconteudo.com.br ou @enoisconteudo nas redes sociais.