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Interior

De Marçal a Neri: quatro indígenas foram mortos, mas só um caso teve punição

Fazenda dos pais de assessora do governo tem proteção da PM por ordem judicial

Por Aline dos Santos | 19/09/2024 11:10
Marçal de Souza (ao centro) discursa para o papa João Paulo II, em Manaus, em 1980. (Foto: Paulo Suess/Cimi)
Marçal de Souza (ao centro) discursa para o papa João Paulo II, em Manaus, em 1980. (Foto: Paulo Suess/Cimi)

Na fronteira com o Paraguai, o município de Antônio João, a 319 km de Campo Grande, está no centro de um conflito fundiário que já matou quatro indígenas, mas, ao longo de 40 anos, só uma morte teve punição. O caso mais recente é o guarani-kaiowá Neri Ramos da Silva, de 23 anos, que foi morto na quarta-feira (18), com tiro na cabeça, durante ação da PM (Polícia Militar).

Mas essa crônica de sangue, morte e terra fez sua primeira vítima em 25 de novembro de 1983. O líder indígena Marçal de Souza, 63 anos, foi morto na porta de casa em Antônio João.

Símbolo de resistência, a execução fez os olhos do mundo se voltar para Mato Grosso do Sul. Ele foi a primeira pessoa nascida no Estado a discursar na ONU (Organização das Nações Unidas).

Em 1980, Marçal de Souza se encontrou com papa João Paulo II e fez um apelo ainda sem resposta: “Queremos dizer à Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte de nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam nosso chão, aquilo que para nós representa a própria vida e nossa sobrevivência neste grande Brasil, chamado um país cristão”, discursou Marçal.

Em 1993, dez anos depois do crime, foram a júri popular o fazendeiro Libero Monteiro de Lima (já falecido) e Romulo Gamarra (funcionário de Libero). A acusação teve a assistência do ex-deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh. Na defesa, o advogado Renê Siufi, renomado criminalista.

Os réus saíram absolvidos do tribunal. O mesmo resultado foi obtido em um segundo julgamento.  O crime prescreveu e nenhum responsável foi identificado e punido.

Grupo que saiu de Antônio João para acompanhar júri em frente ao Fórum de Presidente Prudente (Foto: Reprodução TV Fronteira)
Grupo que saiu de Antônio João para acompanhar júri em frente ao Fórum de Presidente Prudente (Foto: Reprodução TV Fronteira)

Julgamento em São Paulo – Em 24 de dezembro de 2005, o indígena Dorvalino Rocha foi morto no conflito fundiário em Antônio João. É dele o único caso com condenação, mas demorou. O julgamento aconteceu em 28 de novembro do ano passado, depois de 18 anos, no interior de São Paulo. O pedido para júri fora de Mato Grosso do Sul partiu do Ministério Público.

O segurança João Carlos Gimenes Brito foi condenado a 16 anos de prisão pelo assassinato do indígena.

Nesta linha do tempo, a terceira morte na disputa por terra em Antônio João foi de Simeão Fernandes Vilhalva, 24 anos, em 29 de agosto de 2015. Ele foi atingido por um tiro no rosto, que saiu na nuca, caindo às margens de um córrego, próximo da sede da Fazenda Fronteira.

A quarta vítima – Na manhã de ontem, o indígena Neri foi atingido na Fazenda Barra, uma das propriedades rurais que compõem o território chamado de Nhanderu Marangatu, palco de diversos conflitos,

Policiais no local alegam que os indígenas investiram contra a tropa e teriam atirado com armas de fogo, embora a Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública) não tenha relatado policiais feridos.

De acordo com o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), das quatro mortes, só houve condenação para o assassino de Dorvalino. Neri deixa um filho de 11 meses.

Briga na Justiça – Com 9,3 mil hectares, a terra Nhanderu Marangatu teve sua demarcação homologada em 2005, durante o primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No entanto, a demarcação foi suspensa após mandado de segurança impetrado no STF (Supremo Tribunal Federal).

O processo está há anos sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Há, ainda, uma ação em andamento no TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) que pede a aplicação da tese do marco temporal (que defende que os indígenas só têm direito à área se já estavam ocupando-a em 1988, promulgação da Constituição).

A Fazenda Barra pertence aos pecuaristas Pio Queiroz Silva e Roseli Ruiz, pais da advogada Luana Ruiz Silva, assessora especial da Casa Civil do governo de Mato Grosso do Sul.

Liminar da Justiça Federal de Ponta Porã autoriza a presença da Polícia Militar, acatando pedido dos fazendeiros.

Policiais militares e indígenas separados por ponte, em Antônio João.  (Foto: Divulgação) 
Policiais militares e indígenas separados por ponte, em Antônio João.  (Foto: Divulgação)

Por que a PM defende a fazenda? - Em setembro do ano passado, a advogada Luana Ruiz Silva, que atua em nome dos pais, entrou com ação de interdito proibitório na 1ª Vara Federal de Ponta Porã. A família Ruiz apontou que a terra estava na iminência de sofrer turbação (ação que impede ou dificulta o controle e o uso do bem pelo seu dono) pelos indígenas e que a posse da área fosse garantida pela PF (Polícia Federal).

O documento relatou que em 24 de setembro de 2023 houve invasão da Fazenda Morro Alto, e três dias após, outro subgrupo invadiu a Fazenda Fronteira. A promessa era que a próxima invasão fosse na Fazenda Barra, imóvel rural sob a posse de Pio e Roseli Ruiz.

O pedido foi negado em 27 de setembro pelo juiz federal Ricardo Duarte Ferreira Figueira.

“Pois bem, em que pese tenha sido satisfatoriamente demonstrada a posse - já que essa decorre do direito de propriedade dos autores -, não vislumbro elementos suficientes acerca da ameaça da posse que autorize, nesse momento, o deferimento do pleito liminar. Os únicos documentos juntados para esse fim são boletins de ocorrência lavrados perante a Polícia Civil, mas que contém poucas informações, e, ademais, são documentos produzidos unilateralmente conforme declarações prestadas pelos comunicantes à autoridade policial, ou seja, tem o valor probatório de meras declarações”, decidiu o magistrado.

Porém, dois dias depois, em 29 de setembro de 2023, o mesmo juiz ordenou que as forças de segurança fossem proteger o local.

“Determino, cautelarmente, à Polícia Federal que, se necessário com auxílio material da Polícia Militar e da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, bem como da Força Nacional de Segurança, efetue o patrulhamento ostensivo nas dependências da propriedade rural da Fazenda Barra, entre a presente data e o dia 04/09/2023, inclusive, por todos os meios e expedientes cabíveis”.

Polícia Federal recusou - Em 5 de outubro, durante audiência, o juiz federal Ricardo Figueira deferiu o pedido de manutenção da força policial nas dependências da propriedade rural da Fazenda Barra.

Já no dia seguinte, a PF comunicou ao magistrado que não tinha efetivo, que a realização de patrulhamento ostensivo foge de suas atribuições constitucionais e que a própria Corregedoria da Polícia Federal definiu a não autorização de participação de policiais federais em atividades desta natureza.

O juiz reconsiderou a decisão sobre a PF, mas manteve a ação da Polícia Militar e à Força Nacional de Segurança. Em 10 de outubro, o processo foi suspenso à espera de decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Em 15 de dezembro, a Justiça Federal manteve o patrulhamento da Polícia Militar. Na semana passada, após o agravamento do conflito fundiário, o juiz mandou ampliar a atuação geográfica da polícia.

Ao contrário da PF, a PM não se opôs a realizar operação de defesa da fazenda. Até o momento, a Sejusp não se pronunciou sobre a morte de Neri. A reportagem não conseguiu contato com Luana Ruiz.

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