Obra polêmica em igreja serve de alerta para urgência no tombamento
Sem autorização, calçada com ladrilhos antigos foi alterada e provocou discussão na cidade
A ação de cupins, religiosos e outros depredadores do patrimônio histórico, em especial o arquitetônico, tem destruído parte da memoria imobiliária de Mato Grosso do Sul. A insensibilidade de alguns e a queda de prédios seculares em nome do progresso conta, na maioria dos casos, com a conivência e omissão do poder público. Leis não são cumpridas, a fiscalização chega tarde e a recuperação de imóveis obedece a um rito sem fim – e sem solução.
A destruição de casarões centenários em Campo Grande é o maior dos exemplos. A cidade mais antiga do Estado, Miranda, fundada em julho de 1778, praticamente sucumbiu sua história iniciada com a construção de uma fortificação. Fundadas no mesmo ano, Corumbá e Ladário fazem 240 anos em setembro de 2018 e muitas construções ruíram pelo abandono ou pela mão do homem. Aquidauana, Porto Murtinho, Nioaque e outras cidades centenárias têm alguns vestígios de pé.
A perpetuação de alguns prédios históricos nessas cidades, por meio do tombamento e restauração, foi uma grande conquista para a cultura do povo. O Casario do Porto, em Corumbá, é de todas as obras edificadas a partir do século 19 a mais emblemática. No entanto, ainda se depara com crimes sendo praticados contra esse patrimônio, motivados principalmente pela insensatez das autoridades em garantir a preservação via tombamento.
A lei que não existe
A Igreja Nossa Senhora dos Remédios, em Ladário, sofreu descaracterização por intervenção descabida do pároco local, que decidiu esconder os ladrilhos hidráulicos da calçada do templo construído em 1896. Outra igreja construída na época, a matriz de Nossa Senhora da Candelária, em Corumbá, também já foi alvo de polêmica quando a diocese local mudou a pintura do prédio e depois alterou a calçada original com piso de mau gosto para dar acessibilidade aos fiéis.
A matriz inaugurada em 1885 não era tombada a época e o registro municipal só ocorreu em 2017, ano em que o Estado também reconhecendo seu valor histórico. Mas as alterações na construção poderiam ter sido impedidas pelos órgãos competentes, como fez o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional) em 2016, ao embargar uma obra de recuperação do teto do santuário sem as especificações técnicas.
No caso da igreja de Ladário, no entanto, o Iphan cruzou os braços, alegando que o tombamento do templo era apenas em nível municipal. Era o que se presumia até então: a lei nº 969, de 2016, sancionada pelo então prefeito José Antonio Assad e Faria, reconhecia o exemplo arquitetônico de 122 anos como patrimônio histórico, religioso e cultural, “sendo proibido qualquer alteração e modificações no santuário”, entre outros 47 artigos.
Depois que a obra foi concluída, com cerâmicas tapando os ladrilhos hidráulicos, descobriu-se que a tal lei municipal não foi homologada no prazo de seis meses pela prefeitura, que, tão pouco, providenciou os livros de registro de tombamento. “Uma lei inaplicável”, reconheceu a Fundação de Cultura de Ladário, informando a Câmara de Vereadores que, teoricamente, no pé da letra (ou da lei), não ouve dano ao patrimônio público. Que patrimônio?
Está feito, e pronto!
Quando a lei sem validade foi promulgada, o pároco da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, Celso Ricardo da Silva, declarou que o tombamento era “uma segurança para o povo de Ladário e todo o Mato Grosso do Sul e também uma maneira de honrar mais Nossa Senhora”. O religioso, infelizmente, não honrou a santa padroeira da cidade e muito menos respeito o valor histórico do prédio santo ao autorizar, agora, as intervenções que alteraram o piso original.
Com a polêmica em torno da obra não autorizada pelo município, o pároco calou-se. O bispo diocesano de Corumbá, Dom Martinez, justificou, dizendo que os ladrilhos não são originais, seriam da década de 1970. A prefeitura, no entanto, garantiu que são originais. Conforme divulgou a imprensa corumbaense, o bispo lamentou a falta de comunicação entre a Igreja e o Iphan e sentenciou: “como a obra já foi feita, não é possível recuperar os ladrilhos”.
“É um dano irreparável, não tem mais como consertar e que isso sirva de exemplo”, lamentou Rodrigo Arruda, secretário de Governo de Ladário e membro do Conselho Municipal de Cultura. O episódio faz suscitar outras intervenções danosas ao patrimônio arquitetônico, como a demolição do prédio do Colégio Salesiano Santa Teresa, de Corumbá, construído em 1899. No lugar, foi edificado na década de 1960 um prédio quadrado, que os arquitetos chamam de “caixote”.