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Interior

TJ mantém em processo carta psicografada com mensagem de vítima de homicídio

Defesa de réu contestou carta que sustenta tese da acusação, de que vítima foi morta por engano

Silvia Frias | 15/06/2022 11:25
TJ mantém em processo carta psicografada com mensagem de vítima de homicídio
Trecho da carta que teria sido psicografada por amigo de infância de Conrado Buratto: "era pro Tiberio""

“Não foi por culpa sua era pro Tiberie pode ficar tranquilo ore por mim para que eu descanse em paz (...)”

Decisão do TJ-MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) manteve em processo de homicídio uma carta que teria sido psicografada por amigo da vítima. No texto, Conrado Buratto dos Santos Medeiros, assassinado a tiros em 2009, teria se comunicado em 2010, dizendo para o pai não buscar vingança, pois sua morte foi acidente e o alvo era outra pessoa.

O erro cometido pelo assassino faz parte da tese da denúncia do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), que anexou nos autos a carta descoberta ainda na fase de investigação policial. A defesa de um dos réus é contra o material, por violar a condição de Estado laico e de se utilizar de instrumentos não científicos para convencer jurados, em caso de júri popular.

O habeas corpus permitindo a manutenção da carta psicografada no processo foi avaliado pela 3ª Câmara Criminal do TJ, em sessão no dia 10 de junho e publicado na edição de hoje do Diário da Justiça.

TJ mantém em processo carta psicografada com mensagem de vítima de homicídio
Segundo relato, Conrado ainda entrou em contato outras vezes (Foto/Reprodução)

O crime – Conrado Buratto dos Santos foi morto a tiros no dia 26 de agosto de 2009, na saída de sítio localizado próximo da MS-395, em Três Lagoas, a 327 quilômetros de Campo Grande. O carro dele foi emboscado na saída da propriedade rural e o atirador ainda atingiu outro ocupante do carro. Um terceiro conseguiu escapar sem ferimentos.

Na denúncia baseada no inquérito, o mandante do crime seria José Thadeu Marques Moreira Filho, 42 anos e, o executor, Gilson Martins dos Santos, 36 anos.

O Ministério Público alega que o alvo, porém, não era Conrado Buratto e, sim o dono da chácara, José Carlos de Souza Prata Tibery. O motivo seria dívida de R$ 200 mil que José Thadeu tinha com José Carlos, a qual era cobrada constantemente. À época, os dois eram amigos.

A denúncia cita primeira tentativa de emboscada, em que José Thadeu teria pedido ajudar para José Carlos o ajuda-lo com a falta de gasolina do veículo. Desistiu pois o amigo foi acompanhado até o local.

TJ mantém em processo carta psicografada com mensagem de vítima de homicídio
Carta foi anexada ao processo criminal (Foto/Reprodução)

No dia 26 de agosto de 2009 estava sendo realizada partida de futebol no campinho do sítio e vários amigos de José Carlos estavam na propriedade, entre eles, José Thadeu.

Segundo a denúncia, o acusado escolheu essa oportunidade para executar o credor. José Thadeu teria ido ao local antes, por duas vezes, para anotar a placa e modelo do carro da vítima e repassar ao pistoleiro, identificado na investigação como sendo Gilson Martins.

Enquanto o mandante voltava para a partida de futebol, o pistoleiro ficou na tocaia, aguardando a chegada do veículo do dono da chácara. Porém, conforme o MPMS, Gilson Martins se confundiu, emboscou o carro de Conrado, que saída do sítio e atirou. A vítima foi atingida por diversas vezes no tórax e na cabeça, morrendo no local. Um dos tiros transfixou o corpo dele e atingiu a perna do passageiro.

José Thadeu e Gilson Martins foram indiciados por homicídio qualificado por motivo torpe e emboscada incorrendo no erro na execução.

TJ mantém em processo carta psicografada com mensagem de vítima de homicídio
Folhas que teriam sido psicografadas (Foto/Reprodução)

Carta – A denúncia do MPMS foi oferecida à Justiça no dia 26 de novembro de 2019 e recebida pela 1ª Vara Criminal de Três Lagoas em 15 de janeiro de 2020.

Além dos depoimentos das testemunhas, laudo pericial de armas veículos e da vítima, o inquérito anexou um outro documento que foi aceito tanto pelo MPMS quanto pela Vara Criminal: a carta que teria sido psicografada em janeiro de 2010 por *Júlio, amigo de infância de Conrado.

O depoimento foi prestado à Polícia Civil no dia 7 de fevereiro de 2017. A mãe de Júlio também prestou depoimento, corroborando a versão do filho.

Júlio contou que não morava em Três Lagoas na época que o amigo morreu, tendo voltando para a cidade meses depois, não sabendo muitos detalhes da investigação.

TJ mantém em processo carta psicografada com mensagem de vítima de homicídio
Amigo diz que "mão escrevia algo involuntário" (Foto/Reprodução)

Em janeiro de 2010, quatro meses após a morte de Conrado, estava em casa, em Três Lagoas, dormindo. Acordou se sentindo estranho, com a impressão que havia mais alguém na sala. Se deitou de novo e chamou a mãe. Se sentiu angustiado, levantou, pegou caderno e sentou-se na cozinha, começando a escrever.

No depoimento, descreve que que a “mão escrevia algo involuntário, sentia que algo ou alguém se manifestava por meio de si”. Os dois dizem que são católicos, sem qualquer intimidade com o espiritismo.

A mãe do rapaz pediu calma para a entidade que se manifestava, pois a letra estava ruim. Foi aí que ele se identificou como Conrado. Em resumo, dizia para o pai ficar tranquilo e não buscar vingança, pois o que aconteceu a ele seria para outra pessoa.

O rapaz e a mãe ficaram alguns dias sem falar com ninguém sobre o caso, até que chamaram os pais de Conrado e, segundo ele, novamente aconteceu a sessão de psicografia.

Desta vez, Conrado respondia aos questionamentos dos pais. Foi a mãe da vítima que relatou o ocorrido à Polícia Civil, que resolveu convocar o rapaz para prestar depoimento.

Na carta anexada ao processo, é possível ver frases soltas em várias folhas de caderno, como “te amo”, “bj, ao pai”, “Ore por mim”, “saudade”, “Deus”, “Conrado” e “Tiberie”.

 As sentenças mais longas referem-se à morte e são dirigidas ao pai. “Eu sei fala pra ele que tô bem, fala pro pai ore por mim não vingança”. Em outra, consta: “Pai tô aqui e tô bem fica tranquilo te amo”. A última, também para o pai, diz: “não foi por culpa sua era pro Tibere pode ficar tranquilo ore por mim para que eu descanse em paz”.

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Carro da vítima atingido por tiros, em 2009 (Foto/Reprodução)

Laico – No dia 3 de março de 2022, o advogado Tiago Vinícius Rufino Martinho, que representa José Thadeu, entrou com petição no TJ-MS contra o “ato ilegal” pela admissão da carta. Diz que não há como verificar a autenticidade do conteúdo, que exige reflexões de fé e crença e viola a condição de Estado laico.

“Inadmissível o desvirtuamento da natureza do processo penal de científico para o campo religioso”, afirmou. “Tal situação soa absurda e um atentado ao próprio sistema processual penal”. Um exame grafológico não resolveria a situação, já que somente mostraria que quem escreveu foi Júlio.

O advogado também contesta a acusação em si, alegando que a tese de erro não se sustenta, por ser difícil ter confundido os carros da vítima e do pretenso alvo, além de não ter provas de que José Thadeu seria o mandante do crime.

O MPMS contestou o argumento, dizendo que a carta não é prova ilícita. O ministério alega que anexar a carta ao inquérito não violou direitos constitucionais, apenas sendo a documentação de fato pertinente.

Além disso, segundo o MPMS, a utilização de documentos dessa natureza já ocorreu na Justiça de MS, relembrando do julgamento de marido de Gleide Dutra de Deus, ex-miss de Campo Grande. O réu foi absolvido com base na carta psicografada por Chico Xavier. Também citou outro caso ocorrido no Rio Grande do Sul.

Esses argumentos foram levados em consideração pela 3ª Câmara Criminal de Campo Grande, que manteve a carta no processo.

 A reportagem tentou entrar em contato com a defesa do réu para saber se irá recorrer da decisão e não obteve retorno. Também não conseguimos contato com advogado de Gilson Martins.

*O nome do amigo foi omitido da reportagem.


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