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Em Pauta

E assim nasceu a sociedade de consumo

Mário Sérgio Lorenzetto | 01/08/2017 07:11
E assim nasceu a sociedade de consumo

Em 1909, inspirado por uma visita ao Japão, o banqueiro francês Albert Kahn resolveu criar um álbum de fotografias coloridas de pessoas de todas as partes do mundo. O objetivo era "fazer uma espécie de inventário fotográfico da superfície do globo habitada e desenvolvida pelo homem no início do século XX". Elas mostram uma variedade impressionante de trajes e costumes de mais de 50 países diferentes: recrutas desgrenhados na Bulgária, líderes hostis na Arábia, guerreiros completamente nus em Daomé, marajás cheios de adornos na Índia, sacerdotisas sedutoras na Indochina, caubóis de aparência impassível no velho oeste norte-americano. Naquele tempo, éramos o que vestíamos.

Hoje, um século mais tarde, o projeto de Kahn teria pouco sentido, porque a maioria das pessoas em todo o mundo se veste de maneira muito parecida: as mesmas calças jeans, os mesmos tênis, as mesmas camisetas. Há alguns poucos lugares onde as pessoas resistem contra o liquidificador gigantesco da indumentária.

E assim nasceu a sociedade de consumo

A zona rural do Peru, onde o que parece, não é

Sim, é a zona rural do Perú e da Bolívia que vemos as mulheres quéchuas ainda usando seus vestidos e xales de cores vivas e seus pequenos chapéus de feltro, elegantemente atados e decorados com as insígnias tribais. Mas, ledo engano, essas não são roupas tradicionais. Assim como a maioria de nossos indígenas não usam cocares no seu dia-a-dia, essa é mais uma ilusão. Os vestidos, xales e chapéus são, na verdade, de origem espanhola, e foram impostos pelo vice-rei espanhol Francisco de Toledo, em 1572, após a derrota de Túpac Amaru.

Os trajes autenticamente tradicionais das mulheres andinas consistiam de uma túnica presa à cintura por uma faixa, sobre a qual se vestia um manto, que era atado com um alfinete. O que as mulheres quéchuas vestem hoje é uma combinação desses trajes originais com as roupas que seus senhores espanhóis as obrigaram a vestir. Os chapéus-cocos, populares entre as mulheres, vieram quando os trabalhadores ingleses chegaram para construir as primeiras ferrovias. A moda atual entre os andinos (e índios brasileiros em sua maioria) é, portanto, apenas o último capítulo em uma longa história de ocidentalização da indumentária.

E assim nasceu a sociedade de consumo

Não se trata só de roupa, mas de abraçar uma cultura

O que há em nossas roupas que parece ser irresistível aos outros povos? Vestir-se como nós, significa querer ser como nós. Claramente, não se trata só de roupas. Trata-se de abraçar toda uma cultura popular que passa pela música e pelo cinema, sem falar dos refrigerantes e da fast-food. Essa cultura popular contêm uma mensagem sutil. Diz respeito à liberdade - o direito de se vestir ou beber ou comer como você quiser (mesmo que isso signifique ser como todos os demais). Diz respeito à democracia - porque só os produtos de consumo que realmente agradam as pessoas são produzidos. Não há chefes, nem ditadores nos mandando vestir, comer ou beber de acordo com sua vontade. E é claro, diz respeito ao capitalismo - porque as empresas têm de lucrar vendendo todas essas coisas.

E assim nasceu a sociedade de consumo

Onde o trabalhador é consumidor

O vestuário está no cerne da ocidentalização por uma razão muito simples. Aquela grande transformação econômica que os historiadores chamaram de Revolução Industrial - o salto quantitativo no padrão material de vida para uma parcela cada vez maior da humanidade - teve suas origens na manufatura têxtil. Foi, em parte, um milagre da produção em massa ocasionado por uma onda de inovação tecnológica. Mas essa revolução nada seria sem o desenvolvimento simultâneo de uma sociedade de consumo dinâmica, caracterizada por uma demanda quase infinitamente elástica por roupas baratas. A mágica da industrialização, embora os Marx da vida ignorassem esse aspecto, foi que o trabalhador era, ao mesmo tempo, consumidor. O "escravo", preconizado pelos ideólogos da esquerda, era assalariado, livre, escolhia suas compras. O mais pobre dos "proletários" tinha mais de uma camisa, e aspirava ter duas e, em seguida, três...

Hoje, a sociedade de consumo é tão onipresente que é fácil presumir que sempre existiu. Mas, na realidade, é uma das inovações mais recentes e libertária que o ocidente construiu. Sua característica mais marcante é sua atração aparentemente irresistível. Até o mais feroz marxista veste como os demais capitalistas. Até o índio guarani veste como o fazendeiro.

O resultado é um dos maiores paradoxos da história: que um sistema econômico para oferecer escolha infinita ao indivíduo tenha terminado homogeneizando a humanidade.

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