Nem todas as teorias merecem liberdade
O fim de semana foi explosivo no Google, depois de um memorando de um engenheiro ter adquirido vida própria e invadido a internet. O engenheiro expressou duas ideias fundamentais: há menos mulheres na indústria tecnológica por causa das diferenças biológicas, não por machismo. A segunda ideia do engenheiro é que o Google necessita contratar mais pessoas de direita do que aumentar a diversidade contratando mulheres e diferentes raças.
As reações foram diversas, mas podem ser condensadas em três grupos: o primeiro dizia que esse homem é uma besta, mas têm direito de expressar suas ideias; o segundo, gritava pela demissão do engenheiro e o terceiro, o ungia como um herói, expressava o que muitos pensam sem coragem de ir a público. Venceu o segundo grupo, o engenheiro foi demitido. Mas o que ocorreu no Google não é muito diferente da realidade da imensa maioria das empresas no mundo.
O engenheiro, tal como muitas pessoas, acredita que o domínio dos homens brancos na indústria tecnológica, nas hierarquias das empresas, nos mercados financeiros, nos bancos e até nos bairros é fruto de uma seleção natural. Parte do princípio todas as pessoas começam no mesmo ponto, mas só os homens brancos conseguem ir mais longe. Os esforços do Google em aumentar sua diversidade, são vistos, portanto, como uma forma artificial de retirar o lugar a quem merece e dá-lo a quem é menos qualificado por ter uma pele mais escura ou menstruação uma vez por mês.
Nos anos 60 e 70 havia mais mulheres em altas tecnologias.
Pelo tom do discurso é de supor que o engenheiro é uma autoridade em biologia ou sociologia. E é mesmo, com cursos avançados em Harvard e Illinois. Isso torna ainda mais incompreensível seu discurso sobre as diferenças entre homem e mulher e seus efeitos na engenharia. James Damore - o engenheiro demitido - ignora fatos históricos: que o numero de mulheres em ciências da computação nos anos 60 e 70 era bastante elevado - estava acima de 37% dos estudantes, enquanto hoje, a percentagem é de 18%. Durante décadas o numero de mulheres nesse setor do conhecimento crescia mais rapidamente que o de homens. O advento do computador pessoa jogou tudo isso no lixo. Meninos ficaram com os computadores e meninas foram para o balé. São números mundiais. Decisões paternas mundiais. Não há nada de biológico que os diferencie. A ideia de que só os meninos se interessavam pelos computadores obliterou uma geração inteira de potenciais engenheiras e programadoras. Mas trata-se de engenharia social e não de lacunas biológicas. Essa ideia do engenheiro é a mesma que justifica a segregação de negros: eles seriam selvagens, estúpidos... já as mulheres seriam fracas, neuróticas, irracionais...
Guerra dos Tronos ou Guerra Racista?
Essa noção de que se deve dar espaço para qualquer ideia absurda que sai da cabeça de alguém não contribui para uma sociedade mais aberta, contribui para legitimar teorias insanas e perigosas. Tome-se o exemplo da nova série que os autores da Guerra dos Tronos farão para a HBO: é um mundo alternativo em que o sul venceu a Guerra Civil e a escravidão de negros continua a ser permitida. Quantos filmes e séries em cem anos de cinema e televisão já exploraram o tema da escravidão? De quanto precisamos para perceber que a escravidão foi um dos crimes mais hediondos da humanidade? Fantasiar sobre a continuidade da escravidão é algo que só pode trazer entretenimento para quem nunca teve antepassados escravizados.
A continuar com esse liberalismo absurdo, logo teremos outro louco que venha a glorificar a pedofilia. Demasiado ofensivo? Aí está a questão. Nem todas as teorias merecem liberdade.