Aos 13 anos, Julia reencontrou no skate acolhida e força para grito de liberdade
Durante a pandemia, a adolescente desenvolveu transtorno alimentar e hoje recita textos de encorajamento
Sob sol escaldante de meio dia e ao ritmo das batidas de rap, executado pelo DJ TGB, cerca de 200 praticantes do skate tradicional se aqueciam, neste domingo (9), na pista do Parque das Nações Indígenas, em Campo Grande. Os atletas se preparavam para o primeiro Campão Skate Fest, campeonato incluso no 2º ano do Festival de arte, cultura, diversidade e cidadania, Campão Cultural, que começou ontem (8) e vai até o dia 15 de outubro.
Dentro da pista, entre uma manobra mal sucedida e outra, uma garota chama atenção. Não pela cor dos cabelos, piercing, calça larga ou tênis ralado, característicos da cultura de rua, mas pela insistência ao cair e se levantar. (Mal sabíamos que essa seria a tônica da nossa conversa).
Trata-se de Julia Mazini, de apenas 13 anos, que acordou disposta a encarar o desafio. Na saída do obstáculo, a mão da mãe, Juliana Andrekowisk Couto, 38 anos, é o apoio que ela precisa para ganhar confiança. Mas antes mesmo do início de sua fala sobre a expectativa para a prova, a mãe interrompe: “Ela está voltando agora a praticar, pois ainda se recupera do transtorno alimentar”, revela.
Segundo Juliana, a filha foi diagnosticada em novembro de 2021 e o quadro acabou se agravando em decorrência dos impactos causados pelo período pandêmico. “Além de todas as mudanças na rotina, causadas pela pandemia, também ficou longe de pessoas próximas e do skate”.
Para Julia, que começou a praticar aos 10 anos, por acaso, após provar a sensação no skate de ‘brinquedo’ do irmão mais novo, Daniel, 9, além do desejo de um futuro profissional, o skate é mais que esporte, é um estilo de vida. “Quando estou andando de skate esqueço todos os meus problemas. Escolhi este esporte porque foi uma conexão muito forte”, diz a menina.
Juliana ressalta ainda que a reabilitação da filha deve-se graças à família do skate, “pois foi por amor a esse esporte que tomou coragem de levantar e encarar o ‘problema’. O apoio dos profissionais e voluntários que se doaram para que ela estivesse aqui hoje não tem preço. Sou muito grata a todos”, relata.
Julia é uma das meninas skatistas que integram o coletivo “Pantaneiras Skate Girls”, formado por mulheres de todas as idades que dividem a paixão em comum pelo skate. O grupo, que começou há três anos com a finalidade de unir as garotas que curtiam o skate e procuravam companhia para dividir as pistas, hoje é sinônimo de acolhimento. “Nosso objetivo é esse, dar suporte. Além de quebrar um pouco desse preconceito que existe e mostrar que o skate é para todos. Essa é nossa missão. É bom vê-la de volta. O skate salva!”, exclamou Ana Gorgen, 26, uma das fundadoras do grupo.
Escrever cura - “Faz o tratamento médico e procure algo que goste de fazer. Espera que melhora”, aconselha Julia, quando questionada sobre como outras garotas poderiam agir ao se deparar com a mesma situação. Porém, além das terapias e apoio fundamentais ao restabelecimento, a menina que voa sobre rodinhas, mais uma vez, nos surpreende e invertendo a entrevista com uma pergunta: “Sabe onde é a inscrição para participar do Slam?”. (uma modalidade de poesia falada geralmente praticada por poetas urbanos).
Infelizmente não havia nenhuma competição do estilo Slam no evento, mas a skatista mirim não titubeou em nos mostrar. Em primeira mão, o Campo Grande News, apresenta este depoimento visceral e de tirar o fôlego, da mais nova poeta sul-mato-grossense.
Confira o texto inédito de Julia Mazini
eu to vendo
to vendo você gritando com o espelho
chorando até ficar de joelhos
to vendo você aumentar seu objetivo cada vez mais
e se frustrar porque nada que você faz é eficaz
to vendo você ficando dias sem comer
to vendo entre "o que não mata engorda" você preferir morrer
to vendo você brigando com a balança
e vendo você e seu peso virar sua única aliança
vejo você lutando para se alimentar
mas que há algo que você quer mais do que viva continuar
to vendo você enfiando o dedo na goela
e continuar se comparando cada dia com uma nova "ela"
to vendo você só querendo fugir de seu corpo
to vendo você se tornando um ser humano morto
vejo que você até tenta "se amar"
mas que acima do amor próprio está o desejo de se igualar
você não consegue ver o que todos estão te dizendo
mas sua mente sempre ganha de qualquer argumento
vale a pena fazer tudo isso só pra se encaixar?
vejo que está num ponto que responde sim sem pestanejar
to vendo números se tornando tudo com o que você consegue se importar
esperando um cada vez menor pra começar a se apreciar
que você é perfeita, gostaria de dizer
mas por mais que eu tentasse você não conseguiria ver
vejo que você começou se preocupando com o exterior
mas agora essa preocupação virou uma interna dor
to vendo você obcecada por calorias
e por mais que melhore, há várias recaídas
to vendo que controla rótulos dos alimentos
pois não consegue controlar os rótulos que ficam sobre você
já está bem claro todos esses seus tormentos
e que isso já ta preocupante para qualquer um que te vê
vale a pena se amar?
pra que se aceitar quando você pode se destruir pra se encaixar
quanto mais dentro do padrão mais feliz
é isso que você mesma se diz
você se mata aos poucos na tentativa de ser normal
mesmo que abra mão do mínimo essencial
você só queria que tudo isso acabasse
e ao mesmo tempo sabe que para "ser feliz" precisaria que esse sentimento ficasse
O evento – O Campão Skate Fest segue até as 18h e reúne competidores nas categorias Mirim, Feminino, Iniciante e Amador. Marcaram presença ainda o professor Denilson de Maraes, de Dourados e o skatista profissional, Pedro Henrique Iti.
Na premiação, além de troféus e R$ 3 mil, brindes distribuídos aos participantes. Durante o dia também ocorreram atividades para os iniciantes por meio da Escolinha de Skate e .De acordo com o diretor do evento, Elio Angelo, praticante da modalidade há 23 anos, o “objetivo do encontro é fomentar a cena de skate no estado para todas as idades”.
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