Aos 80 anos, Abboud Lahdo é a memória do primeiro filme gravado na cidade
O olhar de quem se apaixonou pela fotografia muito cedo não é mais o mesmo. Uma degeneração ocular levou muito do brilho que Abboud Lahdo, 80 anos, emprestou ao filme mais polêmico e antigo da cidade, o longa-metragem “Paralelos Trágicos”. Com fama de subversivo, que na época da Ditadura Militar era um elogio, a produção foi a primeira filmada em Campo Grande e por ter cenas de nudez foi taxada de pornográfica.
Tudo história, segundo Abboud. Baseado em um livro homônimo, o filme criticava o Estado, a igreja e a polícia. “Ele não lidava com fantasias. O assunto era puxado. A época era militar e foi então que veio em nós a ideia do filme”, afirma.
Lançado em 13 de janeiro de 1964, o filme recebeu boas críticas e chegou a ser avaliado durante a avant premiére por jornalistas de São Paulo. Na época, tudo isso era incrível e resultado de muita luta.
“Na primeira vez que o filme foi submetido a avaliação ele foi censurado, enquadrado como subversivo. Fui até Brasília e disse que ia sair com o filme embaixo do braço, eles falaram que eu ia ser preso, disseram que o filme ofende a nação, ofende o País, ofende, ofende, ofende. O senhor não volta, não tem mais recurso nenhum, o senhor esquece dele”, comenta Abboud.
Sem desistir, o cineasta afirma que procurou outro caminho para tentar liberar o filme em todo o território.
“Eu fui ao general do exército e disse que tinha um recado do general Pitaluga e só dava pessoalmente. Quando o general perguntou o que era, eu disse que não tinha nenhum, mas que eu era amigo dele e que se quisesse poderia perguntar ao meu respeito. Não sou nada do Pitaluga, mas ele é cuiabano e eu sou de Campo Grande. Eu quero que o senhor libere um filme, que se chama Paralelos Trágicos. Contei tudo, disse que não tinha dinheiro para dar pra ninguém para produzir o filme foi um sacrifício absurdo”, lamenta.
A estratégia arriscada acabou dando certo. Uns dias depois, o filme foi liberado e chegou ao empreendimento da família Lahdo, o Cine Acapulco.
“As pessoas falavam de Paralelos Trágicos era isso e mil e uma coisas, mas não tinha nada, tanto que foi exibido para o prefeito de Rio Verde de MT. Tiramos algumas cenas para ficar acessível a todas as faixas etárias e exibimos ele ao ar livre. Foi o primeiro cinema que funcionou ao ar livre, o ano era 1966, 1967”, descreve o cineasta.
Abboud adora falar do passado. Tem reportagens que contam toda a trajetória do filme e da carreira. Mas, nem todo mundo gosta de relembrar as gravações. A fama de pornográfico deixou traumas na história do primeiro filme campo-grandense.
Em uma delas, no jornal independente “A Luta Matogrossense” há uma crítica do cineasta Rogério Sganzeria. Em um dos trechos do texto publico em 18 de janeiro de 1967, o filme é taxado como audacioso.
“Como crítico do Estado de São Paulo quero pôr a mão no fogo, aqui em Campo Grande, pelo filme que os irmãos Lahdo conseguiram fazer contra tudo e todos. Na tradição do cinema brasileiro, eles trabalharam sem apoio dos poderosos públicos, dos banqueiros, dos capitalistas, dos fofoqueiros de esquina e de todo mundo que se julga autoridade em matéria de cinema”, provoca.
Em outra notícia, Abboud Lahdo é citado como ator convidado para a participação no filme do cineasta Claude Lelouch. “Saiu na Folha de São Paulo, em 1966. Infelizmente acabei não participando. Meu pai estava doente, não tinha como eu me ausentar”, justifica.
Memória - Nas pilhas de papeis que guarda na sala de casa, Abboud é só saudade. O cartaz da sua grande obra está enquadrado, assim como uma entrevista em um jornal local. Sem nunca ter se casado ou com filhos, ele tem como herança o trabalho que construiu em uma época que o cinema lutava não só pelo espaço e público, mas principalmente, pela liberdade.
“Cinema é minha paixão, estudei fotografia para conhecer bem o cinema. Eu criei equipamentos, nem encontrávamos financiamento, quando a gente procurava eles achavam que não éramos normais. Querer fazer cinema aqui? Longa-metragem ainda, era um absurdo. O absurdo era geral, não na classe popular apenas, mas na elite, da mais alta, do governo ao povo”, diz.
Um pouco triste por tudo que aconteceu em seguida, Abboud se manteve durante anos na advocacia. Religioso, ele conta que a família veio do Líbano, mas o pai era fluente em várias línguas, inclusive o alemão.
Aprendeu em casa a ter carinho pela cultura, a música e a responder que descende dos arameus. Hoje, enxerga pouco devido a doença, mas fez várias cirurgias. “Consigo ver de perto, antes nem isso”, confessa.
Do cinema ele guarda as melhores lembranças. “Antes de fazer o filme nós tínhamos experiência em jornais e documentários. Filmamos a inauguração da Agência do Banco Agropecuário e isso era exibido em todos os cinemas do País. Na época funcionavam três cinemas, o Alhambra, Santa Helena e Rialto. Depois abrimos o Acapulco. Todos nós assistíamos filmes todos os dias. Os cinemas traziam uma cultura para nós, franceses, ingleses, americanos, holandeses e até russos”, conta.
De um enredo, em especial, Abboud jamais esqueceu. “Um dia assisti a um filme russo que falava sobre a felicidade. Um casal jovem, um rapaz e uma moça. Ela falou para ele, para acontecer tudo de melhor para nós, vá buscar a felicidade para a gente. Ele saiu, rodou o mundo e ela o esperou. Ele envelheceu e antes de morrer voltou a casa. Disse para ela que gostaria de atendê-la, mas que não conseguiu realizar seu sonho. Mas, ela ficou tão feliz em vê-lo vivo, de novo, que ele percebeu e disse. Viu esse encontro? Essa é a nossa verdadeira felicidade”, conta, saudoso, seu Abboud.
Sobre uma possível volta do Cine Acapulco, localizado na rua 26 de agosto, o cineasta é vago. "Ninguém quer que volte. Sempre acontece algo, como se já não bastasse o incêndio, começamos a mexer e arrancaram o resto das coisas", reflete. E assim, a história segue, sem um desfecho visível, mas com muito do passado guardado.