Retroceder será a lição do limbo em que a pandemia nos colocou?
A jornalista Marta Ferreira escreve sobre as reflexões que a crise inédita está nos impondo
Crise, guerra, agora a pandemia. São épocas de dúvidas, perguntas no ar, flutuando, brilhando como letreiros da incerteza. Estamos, para usar comparação medicinal, tipo a pessoa com pavor de ressonância magnética que é obrigada a enfrentar o exame: ficamos lá, torcendo para acabar, agoniados, simulando uma quase inexistência. No limbo.
Só que agora é tudo em dimensão gigantesca e sem o profissional de saúde para vir e nos autorizar a sair da máquina, trocar de roupa e ir para casa, aliviados. Não sabemos quando vai acabar, muito menos como vai terminar. O laudo com o resultado é um ponto de interrogação de dimensões desconhecidas. O tratamento, então, para curar-nos do mal e de seus reflexos, esse apenas Deus, para quem acredita, tem as definições.
Estamos aprendendo na prática como é a porrada de um enfrentamento jamais vivenciado.
A gente vai vendo a cada 24 horas como é. E ficando reflexivos. Uns mais, outros menos, outros nada. Talvez, venhamos a entender só quando virar história, contada aos nossos filhos e aos filhos de nossos filhos, sabe-se lá por qual tecnologia.
Fato, porém, é que parte das pessoas, quando os pensamentos se perdem no horizonte desconhecido - como nós jornalistas fazemos o tempo todo, às vezes sem nem perceber - não quer unicamente sobreviver ao vírus planetário. Tem vontade de superar e não sair “igual”.
Tenho visto muito a leitura de estarmos numa esquina da humanidade. Depois da covid-19, “teremos de ser melhores”, leio e ouço e vejo espalhado pelas redes sociais. Nem que seja para “voltar atrás”, retroceder. Negar parte do desenvolvimento humano, da estrada até o estado de coisas atual.
O que seria esse melhoramento varia de cada individualidade, não seria diferente nem nessa situação limite. Somos cada um amontado de entendimentos.
Pois fiz a pergunta nas minhas redes sociais. Quis saber, especificamente, o que as pessoas foram deixando de fazer com o tempo, com as “adultices”, e gostariam de retomar, depois do temporal passar.
Atividade física foi a vencedora. A pessoas querem fazer jiu-jitsu, flamenco, Pilates, ou apenas poder caminhar na praça do bairro. Viajar mais foi citado, também. Teve quem citou o desejo de desfazer a tatuagem da juventude da qual se arrependeu.
Planos profissionais foram lembrados, como o projeto de reformar um brechó, ou de conseguir novo trabalho, batalha ferrenha na atual situação.
"O que ficou, sobrou" - No meio das respostas, houve quem tenha feito análise mais existencialista e dito não carregar aflições e arrependimentos, por propósito. “O que foi ficando pelo caminho era excesso de bagagem”, anuncia.
E eu ? Tive diversas alternativas para minha própria indagação, incluindo mais ou menos as citações anteriores. Mas o insight, mesmo, veio numa viagem de Uber, no caminho de casa para o trabalho, às dez para as seis da manhã.
No rádio, tocava “Trem do Pantanal”, na voz de Almir Sater. Sentada ali no banco de trás, olhando o céu logo depois do amanhecer, a Afonso Pena ainda vazia, o ar fresquinho, senti o cheiro do café que meu pai, Seu Avelino, fazia ao acordar, quando ligava a frequência AM, nas músicas sertanejas e afins.
Tive nostalgia, tive saudades de quem nos despedimos neste plano há mais de 10 anos. Fui tomada, além disso, por um sentimento bom, sim, mesmo com a lagriminha querendo brotar. A sensação de reconhecer que, com ou sem pandemia, importa mesmo é cultivar a relação com quem não nos abandona, mesmo sem a presença física. É esse meu propósito pós "matrix" pandêmica.