Após 15 anos no time masculino, Mikaella mudou de lado e é a 1ª trans no vôlei
A 1,6 mil quilômetros daqui, Mikaella entrou em quadra pela primeira vez no time ao qual sempre se identificou, feminino. Foram 15 anos se destacando por ser a única a jogar entre homens. O vôlei é o vício dela, o que a relaxa no final de um dia estressante e o que a faz vibrar ao receber uma medalha no peito. Criada em Campo Grande, a estudante começou a jogar aos 13 anos, na escola do bairro onde mora até hoje, Pioneiros e lá que exibe o sorriso da última conquista: ser a primeira mulher trans a jogar no time feminino de um campeonato, em Tocantins.
"Quando se fala em trans no noticiário é só roubo, morte ou beira de esquina. Ninguém acha que tem vida social normal. Eu sou uma mulher trans normal, como você. Não somos restritas à beira de esquina e assassinato, tem que mostrar esse lado b também", justifica. Foi Mikaella quem procurou o Lado B para contar sua história dentro e fora das quadras.
Foi a participação no Meeting MS de Voleibol Gay, no time masculino, que atraiu olhares e gerou o convite para a Copa Surgiu, promovida em Paraíso de Tocantins, no Norte do País. "Veio uma equipe de fora, de Goiás jogar aqui, me viram jogando e eu fui melhor líbero no torneio", conta Mikaella Lima Lopes, de 32 anos. Ela trocou redes sociais e números de telefone e assim manteve manteve contato até aceitar jogar no torneio.
Ela que sempre foi defesa no time masculino, mesmo depois das mudanças no corpo, continuava na equipe oposta, mas jogando como Mikaella e de uniforme feminino. "O pessoal achava engraçado, como uma mulher pode jogar no time masculino?", lembra.
No corpo errado - Desde que nasceu, Mikaella percebeu que não era por influência, que tinha nascido no corpo errado. Convivendo numa típica família tradicional brasileira, filha de pais católicos, sempre soube que seria difícil.
"Para você, criança, entender isso: olhar e sentir atração por meninos e você não estar no corpo certo. Para você, não dá para entender isso. Eu não tenho culpa, já nasci assim", desabafa. E aos 18 anos, a menina saiu da casa dos pais por vontade própria, para a vida homoafetiva que sabia que não poderia ser vivida no mesmo teto que eles.
No esporte, a jovem nunca enxergou barreiras e quando surgiu a oportunidade: encarou. O convite veio pelo time AVG/Flamengo da cidade de Gurupi, em Tocantins, para participar da quarta edição da Copa, depois que o COI (Comitê Olímpico Internacional) divulgou um relatório com diretrizes para participação de atletas transexuais em competições esportivas, válido já para as Olimpíadas do Rio, agora.
Os critérios que precisou obedecer eram estar dentro dos níveis hormonais, o que implicava fazer o teste com um mês de antecedência e outro 72h antes dos jogos, para comprovar que não estava em vantagem e ter documento com nome social.
"Foi uma surpresa, só sabia de um caso no mundo: de uma italiana que já participa da super liga B, no time feminino. Nós pesquisamos e creio que não teve nenhum no Brasil, talvez eu tenha sido a pioneira mesmo". Era para ela ter jogado ao lado de outra mulher trans, de São Paulo, mas acabou não dando certo e Mikaella foi a única. No entanto, era preciso haver um consenso das equipes que disputariam, o que não houve em todas as partidas, mas nem isso a fez baixar a cabeça.
As apresentações seguiam como em todos os torneios. "A gente entra em quadra perfilado na numeração, cumprimenta a plateia, volta e se cumprimenta", descreve. A competição aconteceu no feriado de maio e ela chegou com a equipe no terceiro lugar.
"As pessoas me tratavam maravilhosamente bem, imaginavam que seria outra coisa, mas quando me viram: eu não tinha diferença alguma de uma mulher", afirma. E não tem mesmo. Fala e trejeitos femininos, cabelos longos lisos, pele sem qualquer resquício de barba e uma postura de quem foi para jogar e não desfilar.
A resistência que Mikaella encontrou nas adversárias não foi visto como preconceito. "As equipes podiam aceitar ou não eu jogando, tiveram as que não permitiram por medo mesmo. Eu sempre treinei em rede masculina, fui sabendo que receberia vários nãos, mas fui pioneira", diz orgulhosa.
No geral, a jogadora ataca, defende, levanta e pode ocupar qualquer posição em quadra. Como nos jogos masculinos a rede é bem mais alta (2,45m), ela não tinha como ir para o ataque, devido às mudanças no corpo. "Os hormônios jogam seu rendimento lá embaixo", atribui. Mas nem isso a faz desistir de jogar.
Os treinos aqui a fizeram deixar Campo Grande preparada. Antes da copa começar, Mikaella participou de um amistoso para se integrar ao time. "Eu fui como atleta, não para desfilar. E elas viram a minha conduta e isso pode abrir precedente para a gente participar em outros jogos", avalia a estudante.
Antes de cada partida, Mikaella esperava a resposta do técnico, se tinha ou não conseguido o aval do outro time para entrar na quadra. "Ele vinha às vezes dizendo que tantas tinham aceitado, outras não. Ele perguntava: 'então tá, me fala quem é a trans na nossa equipe aí?' E algumas pessoas apontavam outras, menos eu", conta.
Mikaella escolheu não bater de frente e sim viver o momento. "Como eu falo para a minha mãe, vôlei é a minha droga, minha válvula de escape. Na quadra você esquece de tudo", descreve. Ao final do campeonato, no alto do terceiro lugar, agradeceu à organização.
"Eu sei, me falaram que eles receberam muita pressão para não me deixar jogar. A gente tem que saber entrar e sair dos locais, mandei mensagem agradecendo a iniciativa e que eu sei o que é levar vários 'não' e eles puderam ver uma porcentagem do que e como é..."