Arrumar livros educa mais do que limpar banheiro, diz Mário Sérgio Cortella
Filósofo conversou com Lado B sobre lei que prevê punição a estudantes, movimento Escola Sem Partido e outros temas
Em passagem por Campo Grande, o filósofo, escritor, palestrante e educador Mário Sérgio Cortella topou conversar com o Lado B sobre questões que tomam conta do cenário político e educacional na cidade.
Cortella veio a convite da Omep (Organização Mundial para Educação Pré-Escolar), para uma palestra no Clube Estoril, ontem à noite, onde falou para mais de 800 pessoas sobre seu livro “Qual É A Tua Obra”, lançamento de quase 10 anos atrás que jamais saiu das listas dos mais vendidos.
Autor de mais de 30 livros, o filósofo já ocupou cargo de secretário municipal de Educação de São Paulo e hoje é uma referência nessa área no Brasil. Sobre os assuntos locais, Cortella falou de castigo como maneira de educar, a luta contra um inimigo oculto travada pelo movimento Escola Sem Partido e o estilo de vida da sociedade atual, pautado em ações mecânicas e alienadoras.
Confira os principais pontos da entrevista:
Em Campo Grande, está em discussão a eficácia de lei municipal que prevê castigos, como limpeza de banheiros e salas de aula, como forma de punir alunos infratores dentro das escolas públicas. O senhor acredita no castigo como maneira eficiente de educar crianças e adolescentes?
Eu não temo a palavra castigo. Mas eu prefiro utilizá-la naquilo que ela é, como consequência e responsabilização. Por exemplo: quando alguém atinge o número limites de pontos na carteira de motorista, ele recebe uma penalização. Nós temos um pouco de medo da palavra castigo porque nós vivemos situações muito autoritárias no Brasil. A própria expressão castigo parece sempre agressiva, e não é necessariamente. Eu vivi uma situação assemelhada a essa de Campo Grande. Eu fui Secretário de Educação na cidade de São Paulo e nós não admitimos que a escola transformasse uma penalidade em serviço sem que isso estivesse dentro do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Afinal de contas, quando você vai dar responsabilidade a uma criança ou jovem e diz que ele vai limpar o pátio e varrer a sala, você pode acabar colidindo com o ECA, porque [essas tarefas] não são inerentes àquela questão. Mas quando o conjunto da escola convenciona que a pessoa que tiver algum tipo de responsabilização terá uma prestação de serviços, isso pode ser feito de vários modos. Não necessariamente com a limpeza.
Há vários países em que cuidar do patio e da sala é responsabilidade dos alunos, por exemplo o Japão. São as crianças dentro da escola, em qualquer nível escolar, que fazem cuidado com a limpeza, e isso não é ofensivo àquela comunidade, faz parte daquela cultura. Na nossa cultura, eu acho que a gente ainda tem caminhos que são anteriores a esse, de fazer com que a criança tenha essa atividade, que não é uma atividade pedagógica para uma criança. Eu acho mais adequado que ela tenha outra atividade que não àquela que é responsabilidade da administração.
Associar o ato de limpar ao castigo pode criar alguma percepção negativa em relação a esse tipo de trabalho?
Veja só, todas vezes que a gente quer diminuir alguém, isto é, colocar alguém numa posição de inferioridade, não é incomum que se coloque essa pessoa para fazer atividades que são consideradas subalternas. Então, por exemplo, dentro das Forças Armadas, é muito usual que o castigo seja lavar banheiros, ou lavar as estrebarias, como foi meu caso que estive na cavalaria. Nessa hora, vale muito entender que, se isso tem algum significado em relação à formação no mundo adulto, então é preciso cautela no mundo da criança e do jovem. Talvez se conseguiria elevar o atendimento com outro tipo de punição, como ajudar a arrumar os livros na biblioteca, auxiliar crianças numa idade inferior que precisam de auxílio escolar, isto é, algo mais conectado com a prestação de um trabalho no campo pedagógico, mais do que no campo administrativo.
Algumas pessoas contrárias à lei argumentam que não há previsão de defesa ou contestação da punição...
A lei não tem essa natureza, nem teria como. O ECA, que é de 1990, veda uma série de condutas, e portanto, seja o Ministério Público, seja a Vara da Infância e da Adolescência, ela terá ações [para garantir direito à defesa]. Obviamente que uma lei municipal é subordinada à legislação federal, e o ECA é federal. Pode haver uma tentativa de bloquear esse direito, mas ninguém pode cassar o direito.
O senhor já conhecia alguma lei como essa de Campo Grande?
Você tem leis como essa em várias cidades e em alguns estados, mas o nível de aplicabilidade dela é muito restrita. Em algumas, situações as próprias famílias e a própria cidade entraram com algum recurso ou liminar junto à autoridade competente e isso foi bloqueado. Não acho que [essa lei] não possa ser um caminho a ser debatido, apenas acho que ela é inconveniente. Não é necessariamente equivocada por completo, mas é inconveniente.
Então existem pontos que podem ser aproveitados?
Claro, a ideia da responsabilidade, da capacidade de cuidado, da percepção do reparo, daquilo que seria a justiça restaurativa. Mas esse caminho, que oferece a ideia do trabalho braçal como sendo o castigo, sempre colocará o entendimento que o trabalho braçal é castigo. Por isso, se você não se comportar, você vai lavar banheiro.
Talvez seja necessário mais debates e estudos para se chegar a uma legislação ideal.
Sim.
Outra discussão muito presente no cenário político de Campo Grande é sobre o movimento Escola Sem Partido. O senhor acredita que é possível existir escola sem discussão política?
Não. O movimento Escola Sem Partido tem um pressuposto estranho: o de que haveria um outro movimento, a qual ele se opõe, que seria o Escola Com Partido. Eu não conheço ninguém, em lugar nenhum, que defenda Escola Com Partido, exceto nos países soviéticos e socialistas, fora daqui. Então, o movimento em si tem algum adversário? Uma coisa que ninguém em sã consciência defende é que deveria haver partido dentro da escola. Algo que todos defendem, quando têm bom senso, e eu estou entre eles, é a escola com política, mas não com partido. Aliás, muita gente recusa a palavra “política” na escola e adota a palavra “cidadania”, o que é muito estranho, pois as palavras “política” e “cidadania” significam a mesma coisa. Só que uma é em grego e em outra em latim. A pessoa que diz: “Aqui nós não nos metemos em política, só cuidamos de cidadania”, essa pessoa precisa estudar um pouquinho mais de etimologia.
Essa ideia de um inimigo que não existe, que sequer pode ser visto, tem muita relação com o fascismo, não?
Está ligado também a questão do fanatismo religioso ou de uma concepção aterrorizadora da própria vida. Um argumento que parte das pessoas do Escola sem Partido colocam é que, a esquerda, dizem eles, faz a cabeça dos alunos há 30 anos, dentro da sala de aula. E eu sempre digo que, se assim fosse, essa esquerda seria de uma incompetência brutal, porque cada vez mais os eleitos no nosso Congresso são piores que nas eleições anteriores. Então, se a escola partidariza a sua atividade e leva para dentro de sala a influência ideológica da esquerda, onde estão os eleitos da esquerda? Se só se elege gente ou conservadora ou até reacionária? Se o movimento tem razão em dizer que a esquerda faz a cabeça, seria uma declaração de incompetência dessa esquerda.
O que senhor pensa sobre esse momento que o País vive, em que há tantos embates ideológicos e polarização de opiniões?
Isso é bom de uma democracia. Durante décadas tivemos um movimento na política que tentava enfrentar governos autoritários. Portanto eram todos, muitos diferentes, com uma causa única: mudar o totalitarismo. A medida que nós não temos o autoritarismo há mais de 30 anos, no campo da ação política, essas nitidezes da diferenças vêm à tona. Ainda bem. Eu não sou, de maneira nenhuma, avesso a quem pensa diferente, seja alguém contrário à discussão política na escola, ou às relações homoafetivas, ou à qualquer tipo de interrupção da gestação... que eles tragam a sua voz! Isso é necessário. O que não pode é ser tolo. Quando dos debates mais recentes, em relação a saída da presidente Dilma, era muito comum as pessoas dizerem: “Ah, eu perdi muitos amigos porque a gente começou a discutir”. E uma vez me perguntaram: “O senhor perdeu amigos?”, e eu falei “não, porque não tenho nenhum amigo tonto”. Eu tenho muitos amigos que pensam diferente de mim, mas nenhum de nós rompeu. Só tonto faz isso por causa de uma discussão politica.
O senhor pode falar um pouco sobre o conceito do seu livro, “Qual É a Tua Obra?”
Ele coloca que a vida tem que ser resultado de uma obra, de um propósito. E não apenas de uma ação automática, robótica e alienada. É necessário visar que a vida tem um propósito, que é a elevação do indivíduo e da comunidade. Isto é, uma atividade que seria fraterna, altruísta, mas que ao mesmo tempo construa uma carreira que esteja a serviço de si mesmo e da vida em geral. Portanto, não entender que a vida é apenas um momento de passagem vazia e inútil. Ao contrário. A gente sabe que ela é passageira, mas não é porque é passageira que precisa ser banal, fútil.
Muita gente que faz o que faz sem pensar no porque está fazendo. Age mecanicamente, auxiliando-se um pouco naquilo que Charles Chaplin representou no filme “Tempos Modernos”, no qual o indivíduo se integra à maquina. Tanto que na cena clássica, em que ele cai na máquina e gira por dentro dela, o espantoso é que ele sai vivo do outro lado. E ele sai vivo porque ele é parte da máquina. Ele é também a máquina. Nesse sentido, a ideia é de não viver algo que seja robótico e alienado.
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