Casa escondida reúne 75 anos de história contada até em coleção de latinhas
O acervo homenagens recebidas ao longo da vida pública, recortes e artigos publicados em jornais da época sobre trajetória política e até latinha de cerveja "afanada" do Partido Comunista Chinês.
História escondida em casa simples, de paredes azuis e janelas amplas no Bairro Coopharádio, passa facilmente despercebida até mesmo aos mais curiosos. O proprietário é um homem político com uma longa lista de feitos, ninguém menos que Ruben Figueiró, ex-senador pelo Estado de Mato Grosso do Sul. Com seus óculos quadrados, que ao longo dos anos mudaram muito pouco o formato e olhos claros muito atentos que não escondem a surpresa ao ver a equipe de reportagem do Lado B passar pelo portão. “Como vocês ficaram sabendo desse lugar?”, questiona com riso bem humorado e a educação lapidada pelos anos de vida pública.
São dois quartos, uma cozinha e uma sala feita para integrar hall de entrada, sala de estar e sala de jantar. Cômodos transformamos em museu com acervo colecionado e catalogado durante os 75 anos de atuação política de Ruben. “Isso aqui não foi feito para mim e nem para a minha família. O Instituto Histórico Geográfico queria que eu doasse isso, eu falei: Não, depois que eu morrer, vou deixar isso para que vocês conservem”, externando a vontade de que um dia os documentos reunidos sirvam de fonte para pesquisadores e historiadores, na tentativa de “desenhar perfeitamente a história de Mato Grosso do Sul”.
Na parede branca, apenas no lado direito, são 43 molduras, entre homenagens recebidas e concessões títulos de cidadania de cidades no interior. Além das placas em que coleciona momentos importantes da própria trajetória e uma escultura em madeira que representa o Senado Federal em Brasília, recebida em nome do povo de Santa Catarina por ser um dos autores da constituição de 1988 e da qual hoje defende uma reformulação. “Nós temos uma constituição com mais de 500 expositivos, que já teve 98 emendas aprovadas. Por tanto, uma constituição retalhada. Eu mesmo prego uma assembleia nacional exclusiva para recriar uma constituição enxuta. Apresentei uma emenda para que a Constituição Federal tivesse apenas 38 artigos, como tem a da Dinamarca. Apenas com os princípios fundamentais, como nós na nossa vida. Honra, dignidade, respeito à família, respeito profissional, às pessoas”.
Ali dentro, Ruben afirma nunca ter comprado nada. O sofá de couro, a mesa de centro, as estantes, e a escrivaninha em que se senta de frente para a porta, junto a todos os outros móveis da casa, vieram da fazenda, como denuncia o requinte da madeira maciça, os pilões um tanto rústicos enfileirados na parede ao lado esquerdo e o tacho de cobre sob a mesa de centro. Tudo remete aos tempos do pai, homem que o inspirou preservar a própria história.
“Eu tenho a impressão de que foi um legado do meu pai, que sempre guardou tudo. Ele não era intelectual, era um homem do trabalho, mas tudo o que ele fazia, eu tenho catalogado nos meus arquivos pessoais. Eu tenho livro do meu pai de anotação de despesas diárias dele, tudo o que ele fazia, ele anotava. Meu pai tinha uma letra belíssima e estudou muito pouco. Naquela época era difícil, morava em fazenda, mas o fato é que talvez isso me levou a segui-lo, eu fui apurando e como entendi que isso tudo eram documentos que poderiam ser importantes para a história do meu estado, eu fui guardando”, conta.
Poucos passos adiante, um corredor com ilustrações e poemas, “lembranças de um grande poeta”, que foram presentes do próprio Manoel de Barros. Molduras vigiadas bem de perto por um retrato do ex-senador, anos mais novo, em uma foto oficial de um dos mandatos. Seguindo pelo corredor, a porta da biblioteca com mais de mil livros, entre literatura estrangeira e nacional, colecionados desde os anos de formação universitária, mas nenhum único exemplar sobre Direito, que foram doados aos arquivos estaduais. No quarto em frente a Biblioteca, um escritório que Rubens resume como “coisas da fazenda”, com mobília tão antigas quanto o resto da casa, mas que carregam conteúdos mais pessoais.
Entre as muitas curiosidades, a cozinha com prateleiras em que estão expostas incontáveis latas de cerveja. Peculiaridade que começou uma latinha de King Star “afanada”, em uma data há muito esquecida, servida nas recepções do presídio do comitê central do Partido Comunista Chinês. “Você não pode sair com ela, mas eu saí”. Apreciador de cerveja, a essa parte do acervo parou de crescer há anos, mas atualmente são embalagens do mundo inteiro.
O tour acaba de volta na sala, dessa vez na estante ao lado da escrivaninha. Ali estão os primeiros 500 números da revista manchete, encadernados e catalogados pela data das edições, seguidos por recortes de jornais sobre a atividade política de Ruben e alguns pronunciamentos que feitos. Só nas duas últimas fileiras, são os artigos que escritos para os jornais locais desde 1954.
“Quando eu ingressei na faculdade, eu recebi o diploma do burro”. Aponta uma pequena moldura na parede esquerda ao lado da escrivaninha. O documento de com ares de oficial, entre os diplomas de formação e homenagens vindas de São Paulo. “Na recepção dos calouros, eles entregavam para a gente. Aqui estão as minhas impressões digitais”, brinca, mostrando a ferradura impressa às margens do cartão.
Ali, entre as memórias da juventude, Ruben relembra o ingresso na atividade política partidária quando ainda era um estudante ginasiano, em 1945. Levado por um tio para assistir ao comício do Brigadeiro Eduardo Gomes, que era candidato à presidência da república depois da queda do Estado Novo, do Presidente Getúlio Vargas. “Eu tinha 14 anos, fui e me empolguei com os discursos que ouvi lá, de grandes moradores, Osvaldo Aranha e Odilon Braga, então deputados federais. Desde então foram 75 anos, sem uma única eleição perdida de uma carreira que começou com 7 mil 408 votos em 1970 e terminou em 1986, com 300 e poucos mil votos, já para o Senado Federal.”
Nascido em Rio Brilhante, em 3 de outubro de 1931, Ruben Figueiró é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, atual UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1957, época em que já se interessava pelos rumos políticos do país. Foi eleito deputado estadual, quando Campo Grande ainda fazia parte do Sul de Mato Grosso em 1970 e participou do processo de criação de Mato Grosso do Sul, por onde foi eleito deputado federal, foi constituinte à Assembleia Nacional, sendo um dos autores da Constituição Federal de 1988 e deixou a vida pública como senador da república.
"A minha grande aspiração, que eu trouxe do meu pai, foi a criação do Estado de Mato Grosso do Sul. Eu fui divisionista, o primeiro slogan da divisão, que fez um apelo popular foi aquela expressão: Dividir para multiplicar. Isso em 1958. Antes disso, como estudante no Rio de Janeiro, em uma época em que os jovens tinham uma participação muito maior no processo político. Eu fui presidente de uma entidade que reunia os estudantes mato-grossenses no Rio de Janeiro, quase todos fazendo Universidade. A minha luta, foi no sentido de tomar a direção da entidade dos cuiabanos, porque a briga entre nós era muito acirrada. Quando eu me formei, eu vim para cá com o Nelson Trad e o Nelson Fontoura, viemos os três da mesma faculdade e muito amigos e continuamos aqui a luta pela divisão, participando ativamente dela", relembra.
Inclusive, a própria caneta com a qual foi assinada a divisão e hoje se encontra no acervo do Instituto histórico de Mato Grosso do Sul. “O presidente Ernesto Geisel, já me conhecia por causa da minha atividade, me deu a caneta da divisão. Uma caneta bic modestíssima. As pessoas pensam que é uma caneta de ouro, mas não. Era uma bic pretinha”. A minha participação, a coisa que mais me eleva, foi ter concretizado um sonho que eu tinha como jovem e em decorrência disso, tudo o que está acontecendo de bom e o que está acontecendo de mau e que eu lamento. Eu gostaria que o meu estado fosse ainda uma compensação do sonho que nós tivemos. Infelizmente, muita coisa aconteceu”.
De acordo com Ruben, o primeiro passo na direção errada que o governo deu foi entregar o estado para um cidadão decente, mas que não era Mato-grossense do Sul: Harry Amorim Costa. Um grande cidadão, mas não era nosso. “Nós tínhamos uma briga na disputa do poder, um grupo do qual eu participava e um que era o adversário e o presidente, em vez de escolher um dos lados, mas que local, escolheu colocar o tércio e o tércio não deu certo. A partir daí, a crise se instaurou no estado e persiste até hoje”, afirma.
Observando de perto a desenvoltura política do país, Ruben acredita ser uma atividade necessária e não se diz decepcionado com ela em momento algum, mas o sentimento não é o mesmo em relação aos políticos que detêm o poder e lamenta profundamente que a juventude seja alheia ao processo político. “No meu tempo, tínhamos liberdade para exercer o campo político. Hoje, o jovem está receoso, está tímido, não quer participar e uma parte dos que participam é para atender interesses e não por vocação. Eu fiz política, desde 1945, por aspiração, por idealismo e hoje não há mais isso. Eu gostaria que esse processo tivesse uma participação ativa da juventude, mas os partidos não querem saber disso. Enquanto o Jornalismo dá a oportunidade para vocês exercerem uma profissão nobre, em que vocês podem realizar os ideais que vocês têm, o jovem que ingressa na política não tem essa oportunidade”.
Após 75 anos de carreira política, Ruben define a atividade como a arte do constante engolir de sapos, mas confessa que nenhum deles foi indigesto apesar das decepções. Hoje, diz que sua contribuição política ao país chegou ao fim, mas gostaria que três coisas que levou ao Senado tivessem procedimento: "A Rota Bioceânica, devo isso a um cidadão que jamais será lembrado, chama-se Heitor Miranda dos Santos, que foi prefeito de Porto Murtinho. Ele sempre pregou a ideia da ponte sobre o Rio Paraguai para a interligação com o pacífico. A recuperação da bacia pantaneira do Rio Taquari, e a utilização do gás natural que passa por cerca de 600 km do território Sul-mato-Grossense, em que a construção de uma usina de beneficiamento de gás natural para o gás de cozinha, que iria atender até a República do Paraguai, o que diminuiria o preço do botijão, na época vendido a R$ 35 e passaria a custar R$ 25". Projetos, que com tristeza, constata terem sido abandonados pelo próprio partido, o PSDB, que ele ainda defende.