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Comportamento

Dos cabelos ao Direito, Amanda se reconstruiu como 1ª advogada transexual de MS

Paula Maciulevicius | 06/07/2015 08:34
Foram cinco anos de faculdade que culminaram na apresentação do TCC "LGBT: O Arco-íris Sangra por Direitos Humanos Igualitários". (Foto: Murilo Fagundes)
Foram cinco anos de faculdade que culminaram na apresentação do TCC "LGBT: O Arco-íris Sangra por Direitos Humanos Igualitários". (Foto: Murilo Fagundes)

A supressão dos próprios direitos levou Amanda ao Direito, depois de 20 anos dedicados à área de beleza. Vice-presidente da Une (União Nacional dos Estudantes), Amanda Anderson de Souza tem 34 anos e é a primeira transexual a se tornar advogada no Estado. Do título "primeira", ela acumula vários, como receber a carteira de identidade com nome feminino, entre outras conquistas que nada mais são do que direitos pelos quais Amanda batalhou desde os 8 anos.

Nascida em Campo Grande, Amanda tem ginecomastia, uma alteração glandular que lhe deu, na pré-adolescência, cintura fina, seios e quadris. "Meu corpo foi se modificando automaticamente para o feminino. Meus pais achavam estranho e começaram o tratamento a partir dos 8 anos", conta.

Os tratamentos incluíam até os psicológicos e foram as inúmeras violências sofridas em consultórios, com direito à chamada "cura gay". "Me forçavam a ser heterossexual, mas não é questão de escolha e isso nunca será. Até porque, quem vai escolher sofrer a falta de oportunidade? O preconceito? Você nunca vai poder escolher isso".

Por que Amanda? Significa amada por todos. Me assumi e não perdi ninguém. (Foto: Arquivo Pessoal)
Por que Amanda? Significa amada por todos. Me assumi e não perdi ninguém. (Foto: Arquivo Pessoal)

Numa sexta-feira, em 2011, la resolveu entrar para o curso de Direito, prestou vestibular no sábado e na semana seguinte já estava matriculada, depois de ser aprovada em segundo lugar. Foram cinco anos de faculdade que culminaram na apresentação do TCC "LGBT: O Arco-íris Sangra por Direitos Humanos Igualitários". Na teoria, está a prática vivida na pele. "Eu podia trabalhar a questão LGBT vislumbrando a ótica de dentro para fora", explica Amanda.

A força de vontade dela passou por cima até de ameças de morte, vindas de um colega que dizia que travesti não podia ser advogada. Os dois primeiros anos de curso ainda constavam, na chamada, o nome de registro. "Os professores eram mais complacentes, mas a exposição era inevitável e acabou virando comentário", recorda.

A Amanda advogada é a mesma Amanda de família, que viaja, passeia - sempre que pode - mundo afora. Ela também tem a formação de Secretariado Executivo Bilingue, além de falar quatro idiomas. A Amanda deste currículo extenso, fora os 20 anos de militância nunca conseguiu uma vaga de estágio. E fez o que era a carga horária obrigatória dentro do núcleo de práticas da Universidade.

O preconceito vivido dentro do âmbito jurídico é o maior exemplo do porquê ela e tantas outras travestis e trans seguem a carreira da beleza, por vezes, pelo resto da vida. "É a falta de oportunidade no mercado de trabalho", explica Amanda. Cabeleireira durante duas décadas, ela conta que só tinha duas opções, ou a beleza ou a marginalização.

Amanda vivenciou as alterações no corpo, sem nada entender, desde os 8 anos de idade. Aos 11, com ajuda de uma novela onde um dos personagens era gay, se assumiu homossexual. Nesta idade, ouviu da mãe o desejo de que, pelo menos, ela nunca se vestisse de mulher.

Aos 15, Amanda virou Amanda. "A identidade de gênero é uma construção, você se constrói todos os dias. Eu quero ser uma mulher e com isso começa um conflito muito grande. A primeira coisa que pensam é que você vai virar prostituta. Você não vê outras portas".

A Amanda advogada é a mesma Amanda de família, que viaja, passeia - sempre que pode - mundo afora. (Foto: Arquivo Pessoal)
A Amanda advogada é a mesma Amanda de família, que viaja, passeia - sempre que pode - mundo afora. (Foto: Arquivo Pessoal)

Por que Amanda? - Eu sabia que você ia me perguntar isso. Pelo significado. Amanda é amada por todos. Quando me identifiquei assim, eu não perdi ninguém. Meus amigos permaneceram, minha família teve uma suposta compreensão e nós seguimos. Por que loira? Por gosto, eu sempre fui.

A primeira vez vestida como tal, Amanda usou uma calça jeans, um scarpin azul marinho e uma camisa branca em "V". "Eu tinha uns 14, 15 anos. Meu salto eu deixava na casa dos outros. Fomos à pé do Guanandi até a Exposição. E o que eu senti? Além de dor? Satisfação". 

Amanda foi convidada a se retirar de casa, acabou se afastando um pouco dos familiares, mas nunca de vez. "Até porque família é um pedaço da gente e por mais que você não queira, tenta voltar aos seus".

De filha e Amanda, a mãe só a conseguiu chamar assim quando a Amanda fez 23 anos. Por necessidade, a mãe foi trabalhar com ela no salão. "Aí ela começou a ver o quanto eu era respeitada como Amanda e passou a se sentir envergonhada. Isso fez uma diferença muito grande", conta. 

A Amanda que odeia azul desde criança conversa lembrando do passado no bairro onde cresceu, o Coophamat. "Nesse pé de manga eu subia para brincar de boneca escondida". A lembrança vem com risos, mas por dentro ainda deve doer.

"Não é questão de aceitar, é reconhecer, é ter respeito. Tudo ocorre pela falta de olhar humano ao próximo. A sociedade desconstrói todos os dias através do preconceito. Essa é a arte da resiliência, quem sobrevive a esse tipo de ataque, levanta a cabeça e sai para uma nova luta. E vai assim, tentando se construir num mundo igualitário". 

Amanda tem fala firme ao repassar cenas vividas inúmeras vezes. Me pergunto se em algum momento ela chora. "Eu não choro. A sociedade me fez forte, fez uma casca tão grande que só é quebrada na solidão. Eu choro sozinha, porque sei que o mundo não vai me compreender". Mas a casca dela é quebrada também num abraço. Amanda tem um dos mais afetuosos que já recebi e já vi sendo dado. Um abraço de carinho.

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