Em mundo que pouco respeita transexuais, Cecília e Arthur reconstroem afeto
Nas ruas, de mãos dadas, casal conta como no mundo dos afetos não há espaço para o amor deles
Quando se fala em afeto entre transexuais, Cecília e Arthur sabem que o assunto é difícil. Em uma sociedade que pouco respeita a identidade de gênero, esses relacionamentos são cercados por preconceito, ignorância e estigma. Por isso, de mãos dadas pelo Centro, o casal que vende doces mostra que amar também é um ato de resistência, mesmo que nas ruas de Campo Grande, muitos tentem deslegitimar as inúmeras formas de amor.
E essa aversão aos relacionamentos entre transexuais não surge somente entre cisgêneros (pessoa que se identifica, em todos os aspectos, com o seu “gênero de nascença”). O próprio transexual diverge em relação a procura e troca de afeto.
Na contramão disso, Cecília Amanayra Cruz da Silva, de 21 anos, é uma mulher transexual casada com Arthur dos Santos Montenani, 20 anos, homem transexual. A relação com olhares apaixonados e uma cumplicidade mútua é que dão força para o casal aguentar, todos os dias, o universo invasivo e desrespeitoso com pessoas transexuais.
“A gente reclama de uma solidão, mas aonde a gente busca o nosso afeto?”.
Foi com essa pergunta que Cecília passou a se questionar sobre os motivos de não se relacionar com um homem transexual. “Para algumas mulheres transexuais os homens não são homens o bastante por causa da vagina, para eles a relação com elas também é difícil por causa do pênis. Ou seja, se repete a mesma transfobia sofrida com os cisgêneros. Por isso, é raro ver dois transexuais numa relação amorosa”, explica.
Os dois se conheceram em São Carlos, interior de São Paulo, e estão juntos há ano. A relação começou com uma amizade em que os dois nunca se imaginavam juntos. Até que Arthur sentiu interesse por Cecília e foi correspondido. Cecília nunca tinha se relacionado com um homem transexual, mas decidiu se entregar a relação por pensar de um jeito muito bonito. “Só se descontrói o afeto quando se tem vivência. É sentindo que se constroem outras noções mais dignas e reais do que são corpos e pessoas. Minha relação com Arthur foi transformadora para nós dois”.
São muitos os obstáculos que uma mulher ou um homem transexual enfrenta. Cada um precisa se manter vivo no País que mais mata transexuais e travestis, precisa lidar com a aceitação da família, vencer a evasão escolar, ter uma formação, entrar para o mercado de trabalho... Mesmo aqueles que conseguem vencer várias barreiras se deparam com pessoas que não estão prontas para lidar com o amor.
“Parece que corpo trans é um corpo sem filtro, em que você pode acessar, fazer, falar e pensar o que quiser e a hora que quiser”.
“Numa relação de casal cis existe uma relação de respeito, muitas vezes, não há assédio. Nessa relação entre transexuais, o assédio parte para qualquer um dos lados. Isso porque o homem cis, que é o juiz do gênero enxerga a mulher como disposta a ter relação com ele a qualquer momento. Já o homem trans possui para o homem cis um órgão genital que ele usa como fetiche e agressão, é o acontece com os corpos com vagina. Ou seja, é como se os corpos transexuais não merecessem respeito”, explica Cecília.
Nas ruas, ela e o marido já ouviram de tudo. “Desde questionamentos sobre como a gente transa ao que ela possui no meio das pernas. Perguntas que surgem no meio da rua”, desabafa Arthur. “O corpo transexual é tratado como um corpo aberto e a gente tem que fazer o trabalho de bloquear tudo a todo momento. Nós somos alvos de todo tipo de pergunta, sem pudor e invasiva, com tom de transfobia”, completa Cecília.
“O mercado de trabalho também não está pronto para transexuais”.
Até na busca por uma profissão e espaço no mercado, Cecília e Arthur sofrem transfobia. Juntos enfrentam o que o mercado cobra como “não chamar atenção” que é quando o transexual é visto como se fosse cisgênero. O casal conta ter hoje mais liberdade nas ruas, mas não quando trabalhava em empresas e precisava cobrar dos funcionários serem chamados pelos pronomes corretos. “Insistem em me chamar de ela. Hoje eu sou Arthur, mas o mercado de trabalho tenta te constranger”, conta.
Com Cecília, não foi diferente. No último salão de beleza em que trabalhou a proprietária questionou no segundo dia de trabalho como ela “transava com o marido”, conta. “Eu achei aquilo um absurdo. Eu estava ali para trabalhar e não para falar da minha vida sexual com o meu marido. Sabe, é uma relação abusiva entre essas pessoas e os corpos transexuais”, diz.
Nessa relação de emprego e acesso, a empregabilidade formal é praticamente impossível, acredita Cecília. Mas ela e o marido não desistem. “Somos duas pessoas que se amam, duas pessoas de fé e que não desistem. Hoje estamos na rua vendendo nossos doces para sobreviver, distribuímos currículos e estamos em busca de uma oportunidade. Mais do que isso, buscamos lugares que respeitem nossa vida, por isso, não há como passar pano para empresa que simplesmente tenta marginalizar os nossos corpos”, finaliza.
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