Farmacêutica, Rai largou tudo para estudar e aos 31 anos passou para Medicina
Sempre fui e sempre serei uma grande defensora e divulgadora da máxima “os sonhos não têm idade”, diz caloura.
O Voz da Experiência surgiu para que os próprios leitores contassem, em primeira pessoa, suas histórias. Tabitha Raisa Kiselar Aguilera tem 31 anos, é farmacêutica e já havia dado entrevista para o Lado B anteriormente, como farmacêutica. De uns anos para cá, percebemos que ela havia aberto mão de muita coisa em prol de um sonho. Em especial, quando pediu ajuda dos amigos pelo Facebook para pagar a matrícula em Medicina de uma universidade particular. Apesar do clichê, a máxima que Rai, como se apresenta entre os amigos, defende e divulga, também é compartilhada pelo Lado B. “Os sonhos não têm idade”, diz a caloura que entrou em Medicina na UFMS e só vai se formar perto dos 40.
Entrei na UFMS, pela primeira vez, aos 17 anos. Havia prestado o vestibular para Farmácia, sem saber muito bem os objetivos da profissão: sabia que, com ela, poderia ajudar pessoas e isso pra mim era o suficiente. Meus pais e professores sempre me disseram para fazer Medicina, mas eu nunca quis – tinha pavor a sangue e era extremamente introvertida. Na Farmácia, via a possibilidade de fazer parte da equipe de apoio no tratamento do paciente: fazendo exames laboratoriais, fornecendo medicamentos, que seja. Eu queria ajudar, só não queria estar lá na frente.
Porém, quando estava pra me formar, descobri uma área da Farmácia que poucos conhecem ou até mesmo atuam: a Farmácia Clínica. Nela, o farmacêutico tem o poder de sair do seu esconderijo (de trás de um balcão ou uma farmácia esquecida lá no fundo do hospital) para trabalhar ao lado da equipe de frente: ele se junta aos enfermeiros, médicos, nutricionistas, fisioterapeutas, médicos e outros diversos outros profissionais essenciais e incríveis para estar ao lado do paciente, cuidando e ouvindo suas necessidades mais profundas, para assim tentar ajudá-lo e o encaminhar, quando possível, à cura. Naquela época, eu descobri que a linha de frente não me parecia mais tão ruim assim.
Entrei na Residência Multiprofissional em Atenção ao Paciente Crítico, oferecida pelo Hospital Universitário da UFMS, para me especializar no trabalho com os pacientes mais graves, aqueles internados em unidades de terapia intensiva, aqueles que chegam em uma sala de emergência tão cheio de problemas que você não sabe por onde começar, aqueles que estão há tempos sofrendo com suas comorbidades mas ninguém, até o momento, havia descoberto como definitivamente ajudá-los. E durante aqueles dois anos, por mais que eu tenha me apaixonado ainda mais pela Farmácia Clínica, outro desejo se instalou no meu coração: a de não estar só na linha de frente mas de comandá-la – eu descobri que queria ser médica.
Mas eu já tinha 24 anos, meus pais moravam fora do Brasil e eu precisava me sustentar. Então, guardei esse desejo no meu coração pelos cinco anos seguintes enquanto trabalhava em hospitais em Brasília e em Campinas. Em 2016, senti que era a hora de dar ouvidos ao meu sonho e prestei o ENEM pela primeira vez. Começava ali uma maratona. Em 2017, trabalhava em Campinas e fazia cursinho noturno em Americana. Era a mais velha da turma (obviamente), a que menos tinha tempo para estudar, mas tinha certeza que meu tempo em sala de aula era precioso, então, vencia o cansaço, dificuldade e um trânsito de quase 1 hora e meia todos os dia para estudar até às 23h. Minhas notas melhoraram, mas Medicina é Medicina, um dos cursos mais concorridos tanto em universidades públicas quanto particulares, assim, a melhora não foi o suficiente.
Em 2018, decidi me mudar para São Carlos a fim de ter uma vida mais tranquila, de menos gastos (pois moraria com meus pais) e que poderia me ofertar mais tempo para me dedicar aos estudos. Mas tinha um problema: com o corte de gastos e com a necessidade ainda existente de trabalhar, não tinha tempo ou dinheiro para investir em um cursinho. Assim, dei um passo de coragem e fé e decidi que iria estudar sozinha, apenas com o auxílio de plataformas online. E, contra todas as possibilidades, o inesperado aconteceu: fui aprovada na Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Agora, só faltava um pequeno detalhe: como a faculdade era particular e eu não havia conseguido uma bolsa de estudos, precisava dar um jeito de levantar, pelo menos, o dinheiro para me matricular. O resto eu resolveria depois.
Desesperadamente, comecei a pensar em todas as alternativas que me propiciariam a realização do meu sonho: pensei em vender meu carro, mas teria apenas 3 dias para fazer isso e conseguir pagar a matrícula a tempo de garantir minha vaga, o que era quase impossível. Comecei a vender doces e rifas, presencialmente e pela internet, tudo na tentativa de tentar levantar, em um final de semana, os 8.000 reais necessários para cobrir minha matrícula. Nesse meio tempo, percebi que se estava difícil pagar minha matrícula, pagar as mensalidades seria, então, praticamente impossível. Assim, tomei uma das decisões mais difíceis da minha vida: deixei minha vaga passar e não me matriculei.
Levei um tempo até me recuperar do baque: sentia-me como uma criança que recebeu o presente de Natal que havia sonhado o ano todo, mas depois descobriu que o presente, na verdade, não era dela. Tive que recorrer à ajuda psicológica para poder me reerguer e encontrar forças para, novamente, estudar sozinha, em casa e, ao final do ano, concorrer, de novo, por pouquíssimas vagas e contra jovens e adolescentes que só fazem isso da vida e, além disso, tem condições de pagar, às vezes, mais de 3.000 reais de mensalidade em um curso pré-vestibular.
Achei que tinha tomado a decisão mais difícil da minha vida quando disse não à vaga no Einstein mas, em maio de 2019, descobri que não tinha sido bem assim. Durante as sessões de terapia, comecei a alimentar o desejo de me dedicar apenas aos estudos, comecei a armar um plano para, definitivamente, parar de trabalhar e me tornar uma estudante em tempo integral. Então, mais um passo de fé e coragem foi tomado: em maio, deixei o meu emprego e pedi seis meses de dedicação exclusiva aos estudos para meus pais. Se eu não passasse, resolveria o que fazer depois.
Foram cerca de 8 horas de estudos por dia, chegando a mais de 12 em alguns dias. Fiz tantos exercícios e escrevi tanto que desenvolvi uma tendinite importante no polegar, cotovelo e ombro direitos. Continuei a vender alguns doces para conseguir arcar com os gastos de inscrições e viagens no vestibular. Prestei o ENEM e mais 8 provas. Quase surtei de nervoso quando os erros no ENEM começaram a aparecer, quando o SISU foi suspenso pela justiça, afinal, o tempo que eu havia pedido para meus pais estava se acabando e logo eu teria que encarar a realidade de possivelmente tem que voltar para a equipe de apoio, abrir mão do meu espaço na linha de frente.
No dia 29 de Fevereiro, quase às 18h, estava jogada na sala esperando a resposta do STJ quanto ao resultado do SISU. Percebi que havia passado o dia inteiro sem comer, então, resolvi colocar alguns pães de queijo para assar. Assim que coloquei tudo no forno, alguma coisa dentro de mim falou para conferir se o resultado havia saído. E havia. Foram 3 minutos de desespero tentando acessar um site totalmente congestionado, mas, enfim, eu consegui. E vi meu nome na lista. Aos 31 anos, aprovada em Medicina na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas. Prestei diversas provas, mas algo em mim, lá no fundo, sempre me disse que eu voltaria pra casa, que eu voltaria para a UFMS.
E não deu outra: a universidade que me ensinou, tão brilhantemente, a como fazer o melhor trabalho na equipe de apoio da saúde, agora me ensinará a como estar à frente dela. Em 6 anos, serei médica. Sempre me perguntam se eu não “tenho medo” de iniciar uma universidade aos 31 anos sabendo que irei me formar com quase 40. Mas, sinceramente, nunca pensei nisso. Sempre fui e sempre serei uma grande defensora e divulgadora da máxima “os sonhos não têm idade”.
Ah, e o pão de queijo? Fiquei tão eufórica quando vi meu nome que esqueci dele totalmente. Abracei meu pai, liguei pros meus parentes, fui até o trabalho da minha mãe comemorar com ela e só uma hora e meia depois lembrei deles no forno. Os pães de queijo viraram carvões de queijo e uma boa história para se contar.
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