Na delegacia, depois do abandono, brincar vira coisa séria

Ao entrar na sala, os olhos brilham. No chão, um tapete com almofadas e na estante o que parece ser reluzente: prateleiras repletas de brinquedos. De cachorro, sapo a urso de pelúcia, bonecas, carrinhos, peças de montar e até uma barraca. Seja pelo colorido ou simplesmente por ter com o que brincar, é ali que eles finalmente sorriem. A alegria em meio a uma situação de abandono, violência ou abuso está naquela sala.
O ambiente não é nada convidativo, principalmente para elas que são vítimas, muitas vezes dos próprios familiares. Os pequenos chegam ali indefesos e precisam relatar o drama a que foram submetidos. Aqueles mesmos olhinhos que brilham pelos brinquedos, viram repetidas cenas de violência, a viatura da PM chegar, os flashes das câmeras fotográficas e acabaram tendo de relembrar tudo aquilo entre quatro paredes, em uma delegacia.
“Naquela situação eles ficaram na minha sala e me relataram que ele não têm brinquedos”. Quem conta é a psicóloga Carlota Philippsen, 33 anos, da Depca (Delegacia Especializada na Proteção da Criança e ao Adolescente).
Ela quem montou há cinco meses uma brinquedoteca na própria sala. Tem sorriso calmo e um estilo que destoa dos padrões burocráticos de uma delegacia. É alegre, com o cabelo vermelho e tatuagens, uma surpresa boa na recepção para quem já não deve ver muita graça no cotidiano.

O relato que ela ouviu foi dos irmãos de 4 e 7 anos que foram encontrados na segunda-feira abandonados pela mãe, nas Moreninhas. Para a Polícia, os brinquedos servem como ferramentas para saber de um modo menos formal, a rotina em que a criança vive. Para eles, são muitas vezes aquilo que só viam pela televisão.
“Tem várias crianças que nunca brincaram. Às vezes não é nem da condição financeira da família, é por descaso, relaxo dos pais”.
Quando Carlota assumiu como psicóloga na delegacia, soube de uma sala cheia de brinquedos que são doados pela Receita Federal e que teria a oportunidade de montar um espaço para as crianças.
“Toda criança que sai daqui leva um brinquedo quando vai embora. Muitas vezes elas veem a delegacia como um ambiente assustador. Se não fossem os brinquedos na segunda, eles pediam pela mãe o tempo todo”, conta sobre os dois irmãos do caso das Moreninhas.
Na recepção, uma pequenina que não tem nem 2 anos ainda estava inquieta. Mesmo com bonecos na entrada, como se não houvesse nada ali que prendesse a atenção da menina. Já na sala, ainda que timidamente, ela chegou e passou a brincar.
A reação foi de ficar paradinha, a espera da autorização de onde e no que poderia tocar. Dado aval pela psicóloga, ela relutou, sem saber para onde ia. Era pela quantidade de brinquedos espalhados entre o chão e a estante.

“Tem criança que você vê a agressividade porque quebra o brinquedo. Mas tem criança que ajuda a organizar, deixa até mais arrumado”, comenta Carlota. Era o caso da nossa pequena personagem que aguardava enquanto a família registrava o boletim de ocorrência.
“A gente trabalha na pedagogia e na psicologia que brincar é coisa séria. Os brinquedos são muito importantes para o desenvolvimento. A criança coloca na boneca como ela vê as coisas, no boneco ela vai experimentar ser um super-heroi”.
No caso das crianças das Moreninhas, o inocente relato de que nunca tiveram brinquedos chega até a emocionar. Na região, os vizinhos contam que eles viviam pelas ruas. Para os meninos de 4 e 7 anos, o brinquedo eram eles mesmos, que tinham que ter a responsabilidade de um adulto para com o irmão de cinco meses.
“Eles não têm a possibilidade de experimentar o que é ser criança. A situação em que eles vivem não permite que eles façam isso”, observa a psicóloga.
Ferramenta para a Polícia, distração para os pequenos, ou a alegria de brincar pela primeira vez. A sala é o alento para quem vive na seriedade a falta de muito mais do que brinquedos, o drama de ser protegido pela Polícia de quem mais devia os proteger.