Na fila para cadastrar biometria, a gente vive horas de brasileirismo puro
Reclamação da demora, conversa sobre política, reencontros e descobertas fazem parte da longa espera pelo recadastramento para quem deixou para última hora
Fiz a brasileira típica e deixei para o fim do prazo o cadastramento da biometria na justiça eleitoral. Sofri na fila, por mais de 4 horas, na tarde de calor abafado deste sábado (17). Saí com o pé marcado pelas Havaianas, cada uma de uma cor depois de decidir ir de sopetão, com a lombar em fiapos e o calor grudado no corpo. Saí, é claro, com o voto assegurado no próximo dia 7 de outubro. Mas, acima de tudo, saí com a convicção renovada de que somos um povo sem espelho no mundo.
Aquela fila, aquelas pessoas, os diálogos delas, o comportamento delas são o extrato da brasilidade.
Logo na chegada, por volta das 14h20, a cara de todos era meio sofrida, de expectativa, na calçada de acesso ao Fórum Eleitoral, no Parque dos Poderes. Cada um com um sol sobre a cabeça, caçando uma sombrinha na fila quase indiana. “Será que vai demorar muito”, dizia a expressão nos rostos.
Na calçada, a cena traduz o Brasil atual, de informalidade em alta em pleno ano de eleições gerais. Tem ambulante vendendo água, ambulante vendendo “gelinho”, e também açaí, desses cheios de aditivos adocicados. Há pessoas com banco, cadeira, guarda-sol.
E tem gente discutindo política. Um grupinho de homens jovens, de bermudão e camisa pólo, fala de Jair Bolsonaro como opção “à esquerda que piorou tudo” quando assumiu o comando do País. “A direita é mais moderada. Quando a esquerda assumiu, aí bagunçou tudo”, fala um homem de meia idade em alusão à corrupção mais perceptível nos últimos anos. Os outros acenam que sim com a cabeça. No entorno, há quem discorde, mas apenas com o olhar de reprovação e o balançar de cabeça negativamente.
À frente, o assunto é a disputa ao governo estadual. “Será que o Odilon vai ser mesmo candidato? Ele é juiz, não é político”, pergunta o rapaz. “Vai sim, porque com ele pau é pau, pedra é pedra”, responde a mulher. Uma terceira entra na conversa: “Mas diz que o Puccinelli também será candidato, aí vai ser concorrido”.
A fila anda, o papo muda para a notícia nacional do momento, o assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro. “Era casada com o chefe do tráfico”, anuncia um rapaz, em tom de certeza, passando pra frente o boato de internet já desmentido. “É, é uma morte como qualquer outra, o pessoal fica politizando”, discursa o amigo.
É uma espera permeada por gentes e assuntos variados. Tem até quem tente discutir ideologias construídas por uma vida toda. “Eu sei tudo que eu me esforcei na vida. Esse pessoal do socialismo não me convence não”, começa a mulher. “Você acha justo o presidente de uma empresa pública ganhar 47 mil e ficar numa sala fechada e o profissional que vai para as ruas, pegar sol e chuva, ganhar mil reais?”, contesta a moça tatuada. Depois de comentar como esses cargos costumam ser indicação política, a resposta da outra tenta encerrar o tema. “Ele conheceu a pessoa certa, então”.
Não há desistência, e o assunto envereda para os programas sociais de distribuição de renda. É conversa para a tarde toda, de fato.
Isso em apenas meia hora para entrar no prédio do Fórum Eleitoral, onde o verdadeiro inferno se apresenta. Há dois blocos de gente amontoada, na lateral do prédio e aos fundos, incluindo um pedaço de chão de terra. Nem dá para entender onde terminam os “caracóis” formados pelas pessoas. Há tendas, cedidas pelo Exército, mas não dão conta da multidão.
Reclamações e justificativas são ouvidas aqui e acolá. Uma explica a demora para fazer o procedimento. “Ah, trabalho o dia todo, tenho filho, não consegui vir antes não”. “Vou mentir para a minha mãe e falar que foi rápido, porque ela tá me alertando há meses”, confessa a universitária, depois de mais de duas horas à espera dos passinhos à frente. Alheia a tudo, uma moça prefere ler um livro sobre feminismo, da filósofa Márcia Tiburi.
Passa das 16h. A fila já teve birra de criança, menino brincando numa boa, vendedor de salgado, confusão provocada por algum folgado tentando furar fila. Cara de pau, né? No fim da manhã, contam, teve até vendedor de cerveja, comércio reprimido porque aí já era demais! No chão, no parapeito das janelas, encostadas nos muros, há centenas de garrafas de água e latas de refrigerante e umas poucas de bebida alcoólica. Só assim, se hidratando, para suportar o calorão acima dos 35 graus. Bebendo algum líquido e mudando o peso de uma perna para outra.
Os assuntos, antes genéricos, do tempo à política, vão se tornando mais pessoais. Vão surgindo afinidades, amigos comuns. Depois de mais de três horas na fila, é possível até presenciar o reencontro entre irmãos, que moram separados e se veem pouco. Um nem sabia onde o outro morava, como contou colega do Campo Grande News depois de passar seis horas para cadastrar a biometria no sábado.
O celular, aquele aparelho capaz de reduzir as conversas ao vivo, depois de tanto tempo sem carregar, já não está nas mãos de todo mundo. Sobra tempo para a interação olho no olho. Até, veja só, alguém dar a ideia de criar grupo de “zap” com os mais novos amigos de infância.
E a fila? Chegou ao ponto final, do lado da porta de entrada, onde se sente o ventinho saboroso do ar-condicionado. Quando a gente entra, mais um mundaréu de gente e a descoberta de uma centena de senhas à frente. O jeito é achar um lugar para sentar, e esperar ainda mais. Sem celular e já no ar refrigerado, dá para conversar de forma mais confortável com os amigos da fila.
Ao meu lado, um casal compartilhou as mais de 4 horas de aguardo. Em 10, 15 minutos mais, eu e Cláudia, o nome dela, dividimos o espelhinho para melhorar o aspecto para a foto do cadastro e seguimos o diálogo. Compartilhamos um momento nostálgico: ela é filha de um professor meu de faculdade. A senha apita, despeço-me dela e do marido, depois de ter a oportunidade de dizer que a pessoa que sou hoje teve a contribuição do pai dela, certamente.
Demorou tanto e aconteceu “tudo isso” para um procedimento de menos de 5 minutos: conferir os dados, digitalizar a biometria e buscar o título no balcão. Ali, funcionários bastante cortezes que também fizeram “hora extra” no fim de semana para a “operação biometria”. Não há moral da história para esse relato. Há apenas a mesma constatação lá do início: a gente, brasileiro, é singular, até na resignação de agregar bom humor à obrigatoriedade chata, questionada por muitos.
Vou embora, por volta das 18h30, de carona com um casal de amigos queridos, também "procrastinador". Descobrimos juntos a possibilidade de reaver o título eleitoral até 9 de maio, para quem não quis enfrentar a tarde de “tormento”. Mais brasileiro que isso impossível.