Nada de "bombom": futebol dos dribles ainda é cheio de machismos
Mascarados de "simples elogios", mulheres futebolistas contam como é viver o machismo na pele
C* mano, essa 'bandeirinha' é mó 'bombom', mano...
Que bombom essa 'bandeirinha' é, em...".
Quem disse isso foi um narrador esportivo da partida de futebol entre Serc e União que ocorreu na tarde do último domingo (18) em Chapadão do Sul. O homem em questão aproveitou para "elogiar a formosura" de Fabiana Nunes Fabrão e Ana Matias, as árbitras assistentes e "bandeirinhas" do jogo.
O mesmo futebol que traz momentos de doçura para elas, também revela um gostinho bastante amargo quando o machismo dá sua cara. E nada tem a ver com o placar final.
Para quem é mulher, qualidade técnica, esforço profissional e suor depositado em jogo muitas vezes não são o suficiente para mostrar "ao que vieram". Apesar delas levantarem continuamente a bandeira da igualdade ao ocuparem lugares considerados exclusivamente masculinos, algumas pessoas insistem em fechar os olhos. Pior, corroborarem preconceitos.
E são adjetivos como "bombom" que mascaram o que, na realidade, sempre foi e continuará sendo machismo. Para todas as futebolistas femininas, seja colocando a chuteira, fazendo gols, narrando a vitória ou treinando campeãs, nem "bombom" muito menos "caramelo".
Quando damos e exigimos respeito, mostramos que estamos ali para fazer nosso trabalho e não nos expondo fisicamente para 'agradar' ninguém", afirma Fabiana, 34 anos.
"Sinceramente, isso nem me atingiu na hora porque eu não ouvi ele dizendo, afinal eu estava em campo e ele na cabine. Mesmo assim, isso não tira o peso da situação. Só fui descobrir o que havia acontecido depois, quando meu WhatsApp fervilhou de mensagens das minhas amigas. Não foi a primeira vez e infelizmente não será a última", confirma.
E claro que isso a chateia. "Machuca, sim, mas a gente se acostuma, fazer o quê? Infelizmente, para nós mulheres ocuparmos mais e mais lugares, vamos ter que passar por isso. Com o tempo, quem sabe, essas situações fiquem só no passado", espera.
"Dizem que 'mimimi' é a dor que não dói na gente. 'Mas, nossa, foi só um elogio' ou 'é só minha opinião'. Isso não é e nunca vai ser argumento, porque são questões bem mais antigas que simples justificativas tolas. Na realidade, o maior preconceito. Não sei nem como é possível as pessoas manterem esse tipo de comentário até os dias hoje", diz incrédula Isabelly Melo, jornalista e narradora esportiva de 23 anos.
Ela, que foi a primeira mulher a narrar um jogo de futebol profissional a convite da FFMS (Federação de Futebol de Mato Grosso do Sul), sabe bem o que é sentir na pele o machismo. No último dia 15, sua conquista feminina rendeu também insultos e xingamentos nas redes sociais.
"Coisas do tipo 'essa daí é mulher macho' ou 'nem deveria estar ali'. É algo que sempre nos acompanha. É difícil encontrar uma mulher que não tenha sofrido algum comentário machista, sexista, sobre a aparência, sobre o nosso corpo, ao invés do trabalho em jogo", assegura.
Em invés de ficar lamentando, prefiro rir desse tipo de homem que se dói todo só porque nós mulheres estamos ocupando espaços que na cabeça dele é exclusivamente masculino".
Nem beira, nem fogão – Sempre foi o futebol a maior prática e paixão de Fabiana, tanto é que joga futsal desde que se conhece por gente. Porém, 4 anos atrás, sofreu uma lesão que a fez largar seu talento de atleta.
"Foi aí que um amigo árbitro aqui de Sidrolândia me convidou para fazer uma oficina de arbitragem. Mesmo contrariada, resolvi fazer. Confesso que, no primeiro momento, detestei. Mas cerca de 2 semanas depois fui escalada para um dos jogos do torneio municipal de futebol amador. Fiquei desesperada! Mas parece que Deus colocou um anjo na minha frente chamado Lucas da Cruz, um ex-árbitro assistente do quadro da FFMS. Foi ele quem me passou tudo o que sabia. Treinada, fui para o jogo. Dali em diante peguei um gosto pela arbitragem e até hoje continuo atuando", conta.
Caso parecido de Kátia Silene Carminati, 51 anos, diretora adjunta da Reme (Rede Municipal de Ensino), professora de educação física e advogada que um dia já foi atleta, treinador e permanece sempre uma futebolista.
"Iniciei no mundo dos esportes aos 11 anos em Itaquiraí, no interior do estado. Participei de torneios internos, campeonatos escolares e, em seguida, regional de futsal. Na época, todas nós jogávamos por paixão, não recebíamos nada por isso, nem as bolsa de estudos como vemos nos dias de hoje. Falta de apoio e preconceito foram, literalmente, os nossos maiores adversários", recorda.
Sem falar de que se tratava de um esporte restrito aos homens que, muito provavelmente, preferiam ver as esposas e filhas na arquibancada do que em campo".
De lá pra cá, Kátia passou pelo Naviraí de Campo Grande e até recebeu convite para jogar na Copa Morena. Posteriormente, em 1997, quando já havia se formado em educação física, começou a treinar uma equipe masculina de futsal da Escola Estadual Prof. Silvio Oliveira dos Santos.
"No começo gerava uma certa desconfiança por parte dos meninos… 'uma treinadora mulher?'. Aos poucos, foram acreditando no meu trabalho. Porém, só por eu ser mulher, tive que provar meu valor o tempo. E pior, às vezes ainda tenho", diz.
Bola pra frente – Para Kátia, ver ao longo dos anos muitas mulheres reivindicarem seu espaço em um esporte machista é "gratificante". "Ver uma Marta defendendo uma seleção brasileira e brilhando nos campos do mundo com sua habilidade encantadora, me faz acreditar em uma evolução, mesma que lentamente. O contraste entre futebol masculino versus feminino ainda é grande, principalmente do ponto de vista dos estádios vazios e da pouca transmissão dos nossos jogos", garante.
Já a jornalista Isabelly sonha grande. "Penso em cobrir uma Copa feminina, um Mundial, uma Olimpíada. É meu maior desejo. Me inspiro nas mulheres que, assim como eu, buscam pela profissão de serem suas próprias referências, seja na hora de estar em campo cobrindo um jogo, fazendo reportagem, comentando na rádio, narrando uma partida", admite.
Porém, no que tange o machismo, ela continua pessimista. "Talvez isso nunca vai acabar mesmo. Nem hoje ou amanhã, muito menos do dia para a noite. Ainda porque no contexto político atual, certas 'opiniões' do que a mulher pode ou não fazer foram legitimadas. Mas isso não quer dizer que devemos abandonar o barco. É um trabalho ainda mais árduo de mostrar que cada palavra, frase e conceito pode ser machista, sexista, racista, homofóbico… devemos sim sacudir esse povo, nos unirmos enquanto time de mulheres, principalmente, dar força uma a outra, e galgar cada vez mais os lugares que não só podemos, mas queremos e devemos atingir", afirma.
Por fim, a árbitra Fabiana finaliza: "como eu disse anteriormente, o tempo passou para eu ir me 'acostumando' com certos comentários. Não que isso seja o certo, mas foi o meu processo. Mas temos sm que tocar no assunto. Eu fico muito feliz quando vejo uma mulher em campo ou em qualquer outra profissão. Tem um fato que até me deixou emocionada. Assim que acabou o jogo daquele dia, vieram duas policiais mulheres e pediram para tirar uma foto comigo e com a Ana. Achei muito bacana mesmo! Ali, naquela foto, éramos as mulheres que queríamos e podíamos ser", encerra.
Curta o Lado B no Facebook e no Instagram. Tem uma pauta bacana para sugerir? Mande pelas redes sociais, e-mail: ladob@news.com.br ou no Direto das Ruas através do WhatsApp do Campo Grande News (67) 99669-9563.