No local mais feminista da cidade, luta é orgulho em bairro erguido por mulheres
O nome é conhecido e faz homenagem à pintora modernista. Na região norte de Campo Grande, o bairro Tarsila do Amaral carrega o título de mais feminista da cidade, provavelmente, do País. O motivo? A maioria das ruas leva nome de mulheres que fizeram história. Quem vive ali quase não se deu conta disso e nem sabe ao certo quem foram as personagens. Mas a mulherada tem aquela força feminina, que reforça o significado do título.
Depois de um levantamento publicado no blog As Mina da História, sobre "o bairro mais feminista de Campo Grande", o Lado B foi até a região para saber o que isso representa na prática das famílias que vivem ali, local na periferia da cidade, que surgiu como loteamento popular. Muitas não sabem, afinal, o que é feminismo, mas todas têm clareza sobre o poder de transformação dentro de cada uma.
Dona Evanir Albuquerque Dias, de 67 anos, ajudou na fundação do Tarsila do Amaral há 11 anos. Mora na rua Madre Cristina, em uma casa simples, erguida por ela e pelas filhas, tijolo por tijolo.
Com orgulho evidente, ela conta como era antes do investimento do poder público. "Isso daqui era só mato e areia. A gente vivia em uma barraco de lona logo ali em baixo", aponta para o fim da rua que hoje já está cheia de casas.
Naquela época, segundo a moradora, foram mais de 400 mulheres que pegaram no pesado na construção das casas.
O bairro surgiu graças a projeto de mutirão, durante o governo Zeca do PT. O Estado comprou a área e iniciou a distribuição dos lotes. "A gente aprendeu tudo. Tinha alguns pedreiros que ensinaram as mulheres a carregar massa, preparar, assentar o tijolo. Aqui cada casa tem as mãos de uma mulher", se orgulha.
Para dar assistência às futuras vizinhas, Evanir ergueu rápido a casa de quatro cômodos em que vive hoje. "Eram muitas mães e tinha dia com mais de 70 crianças pra gente cuidar. Eu fiz a minha casa primeiro, pra gente conseguir fazer a comida e ajudar todo mundo no trabalho", lembra.
A tarefa não era fácil e Evanir lembra das dificuldades. "Veio mulher de vários lugares, eram muitas, mas o trabalho era pesado. Vi muita mulher desmaiando", conta.
Evanir garante que o desejo de lutar pelo bem veio ainda na infância. "Eu acho que isso é desde pequena. Quando fui crescendo e vi as pessoas votando, eu queria votar também, queria participar e minha mãe só falava que ainda iria chegar a minha hora", conta.
Nascida em Cachoeirinha, distrito de Dourados,Evanir é da etnia terena, viveu parte da infância com a família na aldeia, mas chegou a Campo Grande ao lado dos pais em busca de uma oportunidade. "Depois de um tempo a gente mudou para Aquidauana, mas lá era muito difícil ter trabalho. Meu pai conseguiu na Noroeste como ferroviário e a gente acabou se mudando", conta.
Morou por um tempo no bairro Estrela Dalva, até chegar definitivamente na região onde vive até hoje.
O nome Tarsila do Amaral, foi escolhido por ela e votado entre tantas sugestões. "Se eu sabia quem era Tarsila? Só pelas histórias que eu ouvia do povo. Nunca soube nada dos outros nomes que tem nas ruas. Mas ela, me falaram que foi uma mulher que enfrentou muitas coisas e tinha muito talento. Ai eu achava que o nome ia representar toda as mulheres que trabalharam juntas aqui", conta.
Evanir já foi cozinheira, lavadeira e faxineira. Atuou durante cinco anos como presidente de bairro e hoje se dedica à família. Mas jura que não esqueceu a luta. "Eu tenho muito orgulho disso tudo. Acho que ainda precisa de melhorias, conquistamos o asfalto, mas falta o esgoto e por aí vai. Só acho que ninguém deve esquecer que foi graças as mulheres que isso aqui existe", lembra.
Mãe de 9 filhos, avó de 10 e com 12 bisnetos, é na frente de casa que mãe e filhas sorriem de orgulho. "Eu era nova quando ajudava minha mãe no concreto, por isso eu falo que sei o quanto ela foi importante pra esse bairro. Não sei quem são essas que tem nome de rua, mas eu sei de quem trabalhou pra fazer o bairro. Acho que todas merecem esse reconhecimento", diz a filha Michelle Aparecida Dias, de 30 anos.
O bairro nem parece movimentado no meio da semana, exceto pelas crianças correndo de um lado para o outro. As ruas quase não tem placas indicando os nomes, mas basta uma caminhada para avistar alguns bem conhecidos. De um lado, Clarice Lispector, do outro Indira Gandhi, Chiquinha Gonzaga e Dorcelina Folador. Por ali, a maioria não conhece as personalidades históricas.
Marcia Pereira dos Santos, tem 43 anos e nunca se deu conta da mulherada famosa pela garra, mesmo morando na região há 10 anos. "Nunca tinha reparado. Não percebo muito isso e são poucos as pessoas que falam né", diz.
Ela parece, realmente, não ter tempo para muitas observações pelas ruas. O dia de Márcia começa às 4h20 trabalhando como auxiliar de limpeza. "Acho que mulher tem um papel importante né. Eu criei meus filhos sozinha e hoje tenho aqui a minha casa, que foi conquistada na raça", comenta.
Não há dados de quantas mulheres rmoram no Tarsila do Amaral, mas segundo Evanir, ainda hoje o número é superior ao de homens. Até no comércio a força feminina pela região é evidente. "Conheço dona de mercado, salão de beleza, loja de roupa e bar", lembra a cabeleireira Cleonice Avelina da Silva, de 59 anos, que mora na rua Indira Gandhi.
Dona de salão há 30 anos e morando no bairro há apenas quatro, nunca ouviu falar em feminismo e pouco sabe da origem do lugar, mas reconhece o papel delas. "Aqui tem muita mulher que vai a luta, acho que em todo lugar né, mas aqui a gente tem orgulho. Tenho meu salão simples, mas é todo sustento da minha família", afirma.
Na mesma rua, a fachada simples revela mais um empreendimento feminino. "Divinas Bar" é comandado por Divina dos Anjos Maria, de 43 anos, que chegou em Campo Grande em 1986. Falando pouco do passado, ela se limita a dizer apenas que deixou para trás uma decepção familiar. Também pegou no pesado para ter um teto. "Dscarregava cimento, tijolo e fazia os blocos de concreto. Pegava no pesado mais do que todo mundo quando cheguei aqui", acredita.
Mãe de sete filhos, assim como outras moradoras, partilha da mesma impressão. "A gente lutou muito pra conseguir melhorar esse bairro. Sinceramente? Acho que podia ter o nome das mulheres que batalharam aqui desde o começo", ri, sem saber que esse tipo de homenagem só pode ser feita a quem já morreu.