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Comportamento

Para as transexuais, “aquendar a neca” é questão de sobrevivência

Assunto tabu nada mais trata do que pessoas, histórias, saúde pública e identificação transgênera pelo ato de esconder a genitália

Raul Delvizio | 15/10/2020 07:21
No pajubá – o dialeto popular das travestis – "aquendar" significa esconder, ocultar; já a palavra "neca" é a gíria para o órgão sexual masculino (Foto: Reprodução/Medium)
No pajubá – o dialeto popular das travestis – "aquendar" significa esconder, ocultar; já a palavra "neca" é a gíria para o órgão sexual masculino (Foto: Reprodução/Medium)

Foi conversando com um grupo de mulheres transexuais lá de Dourados que descobrimos que o tal do "aquendar a neca" vai muito além de esconder a genitália para causar a impressão social de "ser mulher de verdade". É, na verdade, um modo de sobrevivência, e isso no país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo.

"É o artifício que criamos em busca da passibilidade. É o ser trans mas aparentar socialmente como uma mulher cisgênero. Com o uso da estética, maquiagem, vestimenta e também pelo 'aquendar a neca', que combatemos a transfobia sistêmica em todos os espaços que nós transitamos", explica Nosli Melissa de Jesus Bento, mulher trans 'sobrevivente' de 52 anos. A expectativa, em média, é de apenas 35 anos.

Nosli também é pedagoga, transativista e consultora da Divação, uma organização douradense e sem fins-lucrativos de atendimento jurídico e social para pessoas LGBT. Segundo orientou o Lado B, "aquendar a neca" não está inserido numa bolha: faz parte de toda uma questão identitária, de saúde pública e voto diário de coragem que as mulheres trans tomam para – ao menos – serem respeitadas no decorrer de suas vidas.

Hoje "trintona", Lary Hoffmann se descobriu trans quando se iniciou na arte drag (Foto: Arquivo Pessoal)
Hoje "trintona", Lary Hoffmann se descobriu trans quando se iniciou na arte drag (Foto: Arquivo Pessoal)

É assim que Lary também pensa. "Ao longo da minha vida, fui me descobrindo aos poucos dentro da transsexualidade. Comecei na arte drag até chegar como estou hoje, com seios, tomando hormônio, mas sem passar pela cirurgia de redesignação sexual. E esse fato não me incomoda. Talvez lá pra frente eu venha fazê-la, mas por outros motivos, e não porque tenho alguma disforia com minha genitália", comenta a trans Laryssa Hoffmann, também de Dourados.

Para ela, o assunto só é tabu porque uma grande parcela masculina da população ainda vê mulheres trans enquanto objeto sexual. Se o tema fosse discutido de forma plena, transparente e com a devida importância, conforme ela reflete, estaríamos a tratar sobre a saúde física e mental dessas vidas humanas.

"É como se nós não tivéssemos o direito de amar, de viver nossas vidas. A gente sofre muito com o abandono familiar, carência de estudos, falta de afeto e solidão. Após assumirmos a identidade, nós trans somos empurradas à margem da sociedade. Queria muito que as pessoas entendessem nossos dilemas".

"Talvez lá pra frente eu venha fazê-la [a cirugia de redesignação sexual], mas por outros motivos, e não porque tenho alguma disforia com minha genitália" (Foto: Arquivo Pessoal)
"Talvez lá pra frente eu venha fazê-la [a cirugia de redesignação sexual], mas por outros motivos, e não porque tenho alguma disforia com minha genitália" (Foto: Arquivo Pessoal)

Saúde e comportamento – Muita coisa acontece quando "aquendamos a neca". Não é só o método para ocultar o genital masculino e ficar "lisinho", como se tratasse da genitália feminina. Existe uso de hormônio, calcinhas especiais só para mulheres trans, enfim, 'protocolos' que a irmandade segue a risca.

"Eu comecei a tomar hormônio por conta própria. Quem me conhece sabe que mudei muito depois disso. A gente aqui até tem regrinhas de uso, e sabe de cor o nome dos medicamentos. Já as calcinhas são bem apertadas, de uso especial, com dois forros e que seguram bem", comentou uma garota de programa douradense que não quis se identificar.

Junto a uma amiga e colega de profissão, as duas admitem ter um pouco de receio ao frequentarem a unidade básica de saúde por conta de preconceitos e situações constrangedoras que já passaram. Mas seguindo os "rituais" trans e se cuidando sempre que podem – garantem usar camisinha na hora do trabalho – elas tocam suas vidas de maneira natural.

Existem vários métodos de "aquendar a neca". A imagem mostra um deles (Foto: Reprodução/Google)
Existem vários métodos de "aquendar a neca". A imagem mostra um deles (Foto: Reprodução/Google)

"Teve uma vez que viajei de ônibus e estava de calça, e para usar tem que estar muito bem 'aquendada'. Tava quente, abafado, e pra piorar um cara sentou bem ao meu lado. Fiquei sem graça porque me senti fora da minha zona de conforto. Desde esse dia então uso só saia rodada ou shortinho, bem mais meninha".

A transativista Nosli entende claramente que o universo trans é rebatido na sociedade heteronormativa porque, segundo ela, "nossos corpos são considerados ilegítimos e desrespeitados em todas as instâncias".

"A genitália que se encontra entre as pernas não define quem somos. O que define é o que está na cabeça. Nosso gênero, a consciência transfeminina, já está formada. Nada desse assunto é fútil. É só olhar para os marcadores, que mostram claramente o nosso consecutivo extermínio".

A "neca" pode até estar "bem guardadinha", mas o preconceito é quem deveria estar "desaquendado" para todo o sempre.

"Após assumirmos a identidade, nós trans somos empurradas à margem da sociedade. Queria muito que as pessoas entendessem nossos dilemas". (Foto: Arquivo Pessoal)
"Após assumirmos a identidade, nós trans somos empurradas à margem da sociedade. Queria muito que as pessoas entendessem nossos dilemas". (Foto: Arquivo Pessoal)

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