Para quem é surdo, até sertanejo ganha interpretação sentida no peito
Bar da Capital retorna com projeto inclusivo onde shows de música são interpretados na língua de sinais
Quando se trata de música, mais que ouvida ela também pode ser sentida no peito até mesmo para quem nunca a conheceu nem a escutou. Na noite de ontem (14), um bar de Campo Grande retornou com as atividades de acessibilidade por meio de um show de sertanejo interpretado em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Com ou sem som, os gestos revelaram que – quando se trabalha a inclusão – todos têm muito a dizer.
"Eu vejo a Libras e já fico feliz. Música para mim é isso, é esse sentimento de não só estar entendendo o seu significado, mas de me sentir incluída", descreve Geovanna Helena, a estudante de 17 anos que nasceu com surdez profunda e estava sentada na mesa ao lado de dois amigos.
Diferente da garota, Matheus Moreno, 26 anos, e Lucas Alexandre, 18, possuem surdez moderada, isto é, conseguem escutar a presença de sons intensos como um trovão ou sirene de ambulância. Lucas um pouco mais que Matheus por ainda ter a possibilidade de utilizar um aparelho auditivo e, até mesmo por isso, compreende melhor a leitura labial que o amigo. Porém, quando se trata de música, nem a leitura labial é o suficiente – e é aí que entra a interpretação em Libras.
"Isso faz a gente sentir nossa importância. Não só ficamos felizes quando entendemos o que está sendo cantado, performado, mas isso mostra que estão se colocando em nosso lugar de verdade. Estamos sendo ouvidos", afirma Matheus.
Ao invés de uma interpretação tradicional, como acontece em pronunciamentos oficiais do presidente ou programas televisivos com acessibilidade, no caso da interpretação musical, os sinais em Libras das letras são realizados no ritmo da música, que é movimentado pelo corpo todo e não só pelas mãos. Ainda, a expressão facial revela se é se trata de um momento "sofrência" ou uma canção mais animada.
"Tudo conversa. Desde o sinal, a expressão do meu rosto até a movimentação e os passos que ora ou outra vou fazendo. E posso dizer uma coisa? Os surdos não só gostam como também pedem sugestões musicais aos artistas", revela Danielle Gimenes, 28 anos, a intérprete de Libras formada em letras e que atualmente é mestranda em estudo de linguagens, além de ser acadêmica de Direito.
E foi justamente nessa última faculdade onde o professor, advogado e empreendedor Jodascil Gonçalves Lopes, 32, conheceu a moça. Diferente de muitos ouvintes, os dois sempre tiveram um gosto por serem pessoas mais inclusivas. Ela, quando descobriu a língua de sinais por meio de uma amiga também intérprete. Ele, quando promoveu um projeto na instituição onde trabalha de júri simulado que havia surdos participantes. Sugestão da própria Danielle, que se encarregou de fazer a interpretação na ocasião.
"Desde que a conheci, fizemos esse vínculo de amizade. Ela não só se tornou frequentadora do bar, mas foi contratada para fazer a interpretação dos músicos. Isso não tem nada ver como empreendedor, é importante para mim como ser humano. Estou aqui apenas dando o necessário, o que acho que deveria ser o básico em qualquer lugar", garante o dono do Tasco Botequim.
O projeto de ter interpretação musical nas quartas-feiras começou em 2021. O que costumava a ser semanal, com o desenrolar da pandemia e devido os decretos municipais e estaduais – o "lockdown" de semanas atrás –, Jodascil foi obrigado a paralisar. Agora, na noite de ontem, voltou com a iniciativa agendada para acontecer uma vez por mês.
"Mas o intuito é voltar a ser semanal. Sem dúvida, todos deveriam ter isso em mente, de fazer a vida ser mais inclusiva, em qualquer âmbito ou segmento. E, como empreendedor, garanto que os surdos, ou algum outro grupo de PCD (pessoas com deficiência), sempre estão à procura de novos espaços que os respeitem para ocupar", diz.
Empatia – "É preciso que os ouvintes também se coloquem em nosso lugar", opina Lucas. Para ele, o fato de usar o aparelho auditivo ou fazer uma leitura labial "de primeira" não são suficientes, então a interpretação de Danielle vem a calhar. "Preciso do contexto, da emoção, dos gestos no seu rosto. As pessoas não se colocam no lugar do surdo e, por isso, acabam que não tem a profundidade necessária do que a gente vive ou sente", assegura.
"A Libras não é difícil. É como estudar uma língua estrangeira, como inglês ou espanhol. Já passei e ainda passou por muitas dificuldades que me viro como posso, mas que seria bem mais fácil se o ouvinte também se comunicasse melhor. Porque a gente já faz um esforço diário para viver em sociedade, então o oposto deveria ser o mesmo", confirma.
"É preciso que o ouvinte acorde para nossa realidade. É tão comum nos sentirmos desprezados que, quando acontece vivenciamos algo diferente, inclusivo, respeitoso, até nos surpreendemos. São muitas situações que nos obrigam a colocar um ponto final nos nossos sonhos. Isso não deveria acontecer. Afinal, somos como qualquer outra pessoa. E o fato de sermos surdos não nos define por inteiro. Somos bem mais que essa barreira", encerra Matheus.
Assim como todo mundo se apresentou no início da conversa, no final todos eles se despediram revelando novamente o sinal que os representa. Foi aí que o jornalista que vos fala acabou ganhando dessa turma um sinal que simbolizasse o meu nome, a minha pessoa. Pude testemunhar, independente de ser uma pessoa ouvinte, o mesmo sentimento de inclusão que eles estavam a sentir. E isso não tem preço.
Para conferir essa experiência inclusiva, o Tasco Botequim fica na rua Manoel Inácio de Souza, 1293 – Santa Fé.
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