Prefeito veta nome social e travestis atacam: “Ele governa para a religião"
“Ele governa para a religião dele e não para o povo”. Com essa frase a presidente da ATMS (Associação das Travestis de Mato Grosso do Sul), Crys Steffany, comentou o veto do prefeito de Campo Grande, Gilmar Olarte (PP), ao Projeto de Lei 7.797/14, de autoria da vereadora Luiza Ribeiro (PPS), que asseguraria às travestis e transexuais o direito à identificação pelo nome social em documentos de prestações de serviços quando atendidas em órgãos da administração pública.
A decisão de Olarte, publicada no Diogrande (Diário Oficial de Campo Grande) nesta segunda-feira (26), é vista por ela com esdrúxula.“Ele pensa que travesti não paga imposto, não é cidadã e não tem direito. Acha, inclusive, que travestis não pagam o salário dele”, declarou, revoltada.
Na avaliação da presidente da entidade, o prefeito, ao vetar um projeto como esse, está contribuindo para a marginalização das travestis em Campo Grande, no Estado, e nos País inteiro. “Pode influenciar outros prefeitos a tomar a mesma medida”, argumentou.
Ela completou citando exemplos: “Isso faz com que as travestis e transexuais se tornem presas fáceis da prostituição. Elas também podem se automedicar porque não vão ao posto para sofrer constrangimento”.
Transexual, a acadêmica de Direito Amanda Anderson de Souza, de 33 anos, também não economizou nas críticas. “Na verdade ele está indo contra nossa jurisprudência majoritária. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) já tem uma resolução sobre como deve ser o tratamento a transexuais e travestis em todos os órgãos públicos”.
Na justificativa assinada por Olarte, e publicada no Diogrande, lê-se que o a sanção não foi possível porque o projeto “não obedece à forma legal e constitucional para o fim pretendido”. O prefeito se apoiou no inciso I do art. 22, da Constituição Federal, que institui como competência privada da União em legislar sobre o direito civil, para assinar o veto.
“A competência para legislar sobre nome é do Congresso Nacional”, diz trecho do texto, que acrescenta: “o art. 19 do Código Civil protege o pseudônimo, portanto, não há motivo nenhum para se negar proteção aos “apelidos” (às alcunhas) pelos (as) quais a pessoa se identifica, no mínimo por analogia do ar. 4º6 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Tanto é verdade que o nome social integra no nome, que o art. 58 da Lei de Registros Públicos – Lei n. 6015/73 - permite que se integre ao nome, os apelidos públicos notórios”, diz trecho do texto. Este é apenas um dos “obstáculos” apontados por Olarte, que elenca outros três motivos.
Amanda, que está no último ano de Direito, discorda da decisão e, embasada, cita a lei. “Não entramos na questão do pseudônimo, mas da personalidade e dignidade da pessoa humana, do tratamento digno para qualquer pessoa, como está no artigo 5º da Constituição. Ele está desrespeitando a Constituição”, afirma. Por fim, cutuca a ferida: “Ele não consegue separar a religião do Estado Laico, infelizmente”.
A própria autora do Projeto de Lei, a vereadora Luiza Ribeiro, se posiciona de forma semelhante. “A conduta dele [Olarte] não tem sido a de um representante público. Ele atua na Prefeitura com a condição pessoal e religiosa. Não governa pela sociedade”, diz. “Ele vetou por desconhecer a realidade das transexuais e das travestis. Não tem o menor fundamento jurídico”, completou.
Luiza explica que o projeto tem a ver com a garantia de individualidade. “A pessoa precisa ser reconhecida como ela quer ser. Isso é o que chamamos de direito de personalidade”, explica. A ideia não é substituir a identidade civil porque isso, comenta, é outro processo.
O objetivo é garantir garantir um tratamento digno às travestis e transexuais. Tendo uma lei como garantia, exemplifica, elas poderiam chegar no posto de saúde e pedir, logo na recepção, para ser chamada pelo nome que se identifica.
“Elas tem o direito de ser como são e devem ter o respeito não só de nós, indivíduos, mas do Estado, do poder público”, finaliza, ao dizer que, agora, vai trabalhar para a derrubada do veto.
No ano passado o Governo de Mato Grosso do Sul deu um passo à frente. Criou, por meio do decreto nº 13.954, de 7 de maio, a Carteira de Identidade com nome social. O registro concedido pela Setas (Secretaria de Estado de Trabalho e da Assistência Social), por meio do CentrHo (Centro de Referência em Direitos Humanos de Prevenção e Combate a Homofobia), em Campo Grande, assegura o direito de identificação, por nome social, às travestis e transexuais. A primeira remessa saiu em setembro.