Seguir especialistas da Internet acaba nos descolando da realidade
Olho no relógio e são 18h53, penso 'já está quase na hora de começar o ritual noturno com as crianças'. Acabamos de chegar da rua e conversamos um pouco na varanda. Caetano cochila na rede, Maria Cecília brinca de correr.
Cleber e eu estamos colocando o papo em dia, já que muitas vezes não é possível trocar ideia com dois bebês demandando tudo o tempo todo. Falamos sobre a vida e suas mazelas. As diferenças que gritam cada vez mais alto em nosso país. A fome real que chegou aos lares com mais força nos últimos anos e a urgência em reconhecer nossos privilégios. Extinguir de vez a ideia de que as oportunidades são iguais para todos, basta aproveitá-las.
Neste mesmo momento bate no portão um rapaz de bicicleta pedindo água. Na garupa ele tem uma caixa aparentemente para recolher alimentos e no cano da frente um menino de uns três anos de idade. Maria se aproxima e pelo vão do portão responde ao 'oi' dado pelo coleguinha.
O moço mora do outro lado da cidade e perambula pelas ruas em busca de algum 'bico'. Morador de uma ocupação junto com a esposa e outros dois filhos, eles tentam driblar a fome como podem. Enquanto Cleber busca a água, eu assisto a interação das crianças, tão alheias a diferença que as separa como se aquele portão fosse a única barreira entre eles. Quanta inocência.
O menino, falante que só, não tem ideia de como a vida pode ser áspera. Eles pegam a água e um pacote de biscoito de chocolate e vão embora. Eu fico ali na rede, olhando minhas crianças e sentindo um pouco de vergonha de a minha preocupação ser a rotina do sono dos meus filhos, enquanto aquele menino sequer tem hora para chegar em "casa". Eu sei que a gente não pode deixar de viver em detrimento do sofrimento do outro, mas também sei que a linha entre a realidade e a superficialidade é tênue, ainda mais em tempos tão líquidos quanto os que vivemos. Tudo nos moldes das redes sociais.
Precisamos cuidar bem das nossas crianças, fazer tudo que tiver ao nosso alcance e ao mesmo tempo nunca esquecer do que se passa do outro lado do portão.
Até mesmo para ensiná-los a olhar além do próprio umbigo, afinal não estamos cuidando de bebês, estamos criando seres humanos que serão nossa representação nesta terra quando aqui não estivermos mais.
Jéssica Benitez jornalista, mãe do Caetano e da Maria Cecília e aspirante a escritora no @eeunemqueriasermae
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