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Comportamento

Sem culpa, mãe expulsa filho e há 5 meses sonha com vida longe da pasta-base

Depois de expulsar filho de casa, mãe recebeu ligação de clínica, para onde rapaz foi de mototáxi e está há 5 meses em tratamento

Paula Maciulevicius Brasil | 06/03/2020 09:09
Mãe colocou no papel um resumo em tópicos do que tem vivido nos últimos 26 anos. (Foto: Kísie Ainõa)
Mãe colocou no papel um resumo em tópicos do que tem vivido nos últimos 26 anos. (Foto: Kísie Ainõa)

Não foram uma, nem duas, nem três vezes. Foram internações a perder de vista e promessas feitas ao vento de que "dessa vez é pra valer". Tem 26 anos que uma mãe vê, dentro de casa, um filho morrendo aos poucos. A esperança renasce a cada engordada, quando o rosto fica "cheio", o primeiro sinal de que a pasta-base está, pelo menos por enquanto, longe.

Há cinco meses, depois que a mãe expulsou o filho de casa, ela recebeu uma ligação que lhe trouxe de volta o sorriso. O rapaz havia saído do portão de casa andando, pegou um moto-táxi e chegou até a clínica de recuperação sozinho. Lá, além de pagarem pela corrida, ainda o receberam com um abraço.

Por se tratar de uma exposição, e como tanto o Lado B quanto a mãe enxergam a dependência química como uma doença, nem mãe nem filho serão identificados. Apenas para situar e o leitor entender a força dessa mãe, ela tem 66 anos, ele tem 41 e é usuário de drogas desde os 15 anos.

O filho na última recaída, encontrado ao relento em um terreno baldio. (Foto:Arquivo Pessoal)
O filho na última recaída, encontrado ao relento em um terreno baldio. (Foto:Arquivo Pessoal)

A distância, hoje, que separa os dois é de 20km. Ela, em casa. Ele, numa comunidade terapêutica desde a manhã daquele domingo, depois que colocou o filho porta afora. A imagem que ilustra essa matéria é da cena que nossa entrevistada espera ter visto pela última vez, a do rapaz debaixo de um pé de jaca ao relento depois de horas consumindo droga.

Com uma folha de caderno em mãos, a mãe recebe o Lado B na sala de casa. As palavras contam em tópicos o que ela acredita ser importante compartilhar como mãe de um dependente químico. Na memória está o abraço dado na visita mais recente à clínica onde o filho está em tratamento. "Toda vez que eu vou lá visitá-lo eu venho com esperança. Eu vejo ele assim, como se diz, muito diferente de quem ele é nesse mundo aqui fora, porque a droga escraviza demais".

"Manipulada" em diversas situações, a mãe já perdeu as contas de quantas recaídas o filho já teve depois de sair bem da comunidade terapêutica e dizer para si mesmo que agora passou. "Ele fala: eu não vou mais te decepcionar, não vou mais fazer o que eu estava fazendo. Eu vou cuidar da senhora... E ele me manipula. Quando dá dois, três meses eu começo a perceber o comportamento "droga", ele começa a mentir, o que já me deixa em alerta", relata.

As mentiras são "vou ali e já volto, "vou caminhar", "vou à academia", "só comer um salgado". As horas passam, o dinheiro some e o filho pratica roubos. "Ele não é ladrão, ele está ladrão. A droga é que rouba", explica. Em casa, as coisas começam a ser escondidas e trancadas, até que o semblante do rapaz joga na cara da mãe a volta do vício. "Ele vai ficando magro, feio, ansioso, não dorme e é essa batalha, toda vida nessa batalha..."

Com o lado espiritual muito presente na família, quando criança o filho sempre esteve dentro de igreja, teve a mãe "em cima", foi a psicólogos, mas nada adiantou. "Hoje minha consciência fica mais tranquila porque eu vejo que eu nunca desisti, faço terapia e depois de anos e anos, percebi que são escolhas. Eu não me culpo. Vejo que é uma doença, porque de todos os meus filhos só ele quem escolheu esse caminho. Ele teve uma pré-disposição para experimentar a droga e se apaixonar por ela".

"Só por hoje" 

Essa é a frase que ela repete a si mesma e para mim três vezes seguidas. É assim que vive a mãe de um viciado: um dia de cada vez. A força dela ao relatar como é passar mais de 20 anos assim é de arrepiar. A mãe não chora. Quando a emoção toma conta da racionalidade, ela só respira firme, segura, e segue o relato sem dar uma pausa sequer para não haver chance da lágrima escorrer. "Eu já chorei tanto, sabe? Mas a terapia me fortaleceu muito, muito, muito, muito mesmo. Até eu fico assim, admirada, de não estar chorando mais".

Ela já foi atrás do filho em boca de fumo, rodoviária, esquina e calçada com o sentimento de tristeza, angústia e raiva e, nas mãos, alimento. "Cada vez é diferente. Eu já chorei, abracei, falei: 'meu filho, vamos orar', você esqueceu que tem uma casa? Uma família? Um quarto limpo? Uma cama? Que a geladeira lá de casa está cheia?'". E do outro lado só se ouvia o silêncio. 

O que ela mais sente e se arrepende é das vezes em que se descontrolou. "Eu xinguei ele e aí cheguei em casa muito, muito mal. Mas nunca disse: 'você não tem mais jeito'. Acho que Deus nunca permitiu que eu falasse isso".

Por recomendação do terapeuta e também do grupo de Amor Exigente, a mãe deixou de levar remédios e alimentos para o filho nas ruas. "É errado. A gente não pode ir atrás, você tem que deixar ele quebrar a cabeça, mesmo que venha a pior das consequências, a gente não pode ir atrás. Eu cortei tudo, os remédios dele, porque ele gostava de tomar para dormir de dia", conta.

"Depois ela grita"... frase que descreve as consequências da dependência química. (Foto: Kísie Ainõa)
"Depois ela grita"... frase que descreve as consequências da dependência química. (Foto: Kísie Ainõa)

A última recaída, que chegou a ser registrada em fotos pela mãe, foi a mais difícil para ela. O telefone de casa tocou e era uma amiga informando o paradeiro do rapaz. Ela tinha o visto entrar em um terreno baldio. A mãe então pegou o endereço e foi lá lá.

"Chamei a minha irmã, porque eu não queria ir só. Eu vi que tinha duas pessoas, uma com uma lona e o outro debaixo do pé de jaca, em um colchão, o rapaz que estava na lona não era ele. E aquele rapaz do colchão, no relento, parecia ele pela perna. Fui chegando, ele abriu os olhos e me perguntou: 'o que a senhora está fazendo aqui, mamãe?' Eu falei: 'vim te ver meu filho, ver em que ponto, em que situação você está'".

A resposta foi de que dali ele não sairia para clínica nenhuma. Sem condições de ouvir uma só palavra, a mãe se afastou e quem tomou a dianteira foi a tia. 

Às 4h da manhã, a campainha da casa tocou e era o filho, depois de ter ficado ao relento, ele foi pedir abrigo para a mãe. "Ele falou: 'mãe, deixa eu entrar, e assim, no Amor Exigente - como o nome mesmo diz - é uma coisa exigente, você tem que amar, mas tem que exigir. E ele pediu: 'por favor, mãe. Eu tô com febre e frio. Deixa eu entrar. Amanhã vou para a comunidade'".

Na esperança de ver o filho se tratar, ela abriu o portão, serviu comida e armou a rede nos fundos de casa para que ele dormisse. O acordado entre mãe e filho foi de que ele se levantaria às 7h30 da manhã para ir à clínica. 

No horário combinado, ele se negou. "E então eu falei: 'sai daqui. Não quero você aqui, esqueça de mim, esqueça desse endereço'. Falei com ele com muita raiva, muito nervoso, falei duro, duro mesmo. Ele levantou e saiu". 

Aos prantos, a mãe descreve que chegou a se ajoelhar diante de tanto desespero. "Foi quando 10h30 da manhã a comunidade me liga, ele tinha chegado lá e estava sendo acolhido". Parte do trecho o filho fez à pé e depois pegou um moto-táxi que foi pago pelo diretor da clínica. 

"Me mandaram foto dele, ele sendo acolhido, depois de tomar banho e se alimentar", descreve. 

O medo continua a assombrar a família, porque para ficar bem mesmo, o rapaz precisa passar pelo menos 1 ano na comunidade. "Eles acham que com poucos meses estão bem e saem. Eu tenho medo, é um medo que toda mãe passa, mas ele me disse que se rendeu, que quebrou o orgulho e que quer ajudar quem chega lá também". 

A mãe só aceitou falar por estar fortalecida e acreditar que essa mesma força que brota nela também despertou no filho. Vista como doença, a dependência química é incurável e exige, na opinião da mãe, tratamento eterno e diário. 

"O fim seria cadeia, cemitério ou comunidade. Eu tenho consciência disso. A vida do adicto é controlada pela droga e a droga controla a vida dele. Para mim ele diz agora: 'muito obrigada porque a senhora não me aceitou em casa e brigou comigo'. Hoje ele sabe que se chegar a notícia de que ele foi embora, aqui ele não entra mais. Eu tô mais forte e eu nem estou chorando".

Histórias como a dela podem ser ouvidas e compartilhadas também nas reuniões do Narcóticos Anônimos, que acontece toda segunda-feira, às 19h30, na Paróquia Sagrado Coração de Jesus, na Avenida Mato Grosso, 3280.

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