Sem culpa, mãe expulsa filho e há 5 meses sonha com vida longe da pasta-base
Depois de expulsar filho de casa, mãe recebeu ligação de clínica, para onde rapaz foi de mototáxi e está há 5 meses em tratamento
Não foram uma, nem duas, nem três vezes. Foram internações a perder de vista e promessas feitas ao vento de que "dessa vez é pra valer". Tem 26 anos que uma mãe vê, dentro de casa, um filho morrendo aos poucos. A esperança renasce a cada engordada, quando o rosto fica "cheio", o primeiro sinal de que a pasta-base está, pelo menos por enquanto, longe.
Há cinco meses, depois que a mãe expulsou o filho de casa, ela recebeu uma ligação que lhe trouxe de volta o sorriso. O rapaz havia saído do portão de casa andando, pegou um moto-táxi e chegou até a clínica de recuperação sozinho. Lá, além de pagarem pela corrida, ainda o receberam com um abraço.
Por se tratar de uma exposição, e como tanto o Lado B quanto a mãe enxergam a dependência química como uma doença, nem mãe nem filho serão identificados. Apenas para situar e o leitor entender a força dessa mãe, ela tem 66 anos, ele tem 41 e é usuário de drogas desde os 15 anos.
A distância, hoje, que separa os dois é de 20km. Ela, em casa. Ele, numa comunidade terapêutica desde a manhã daquele domingo, depois que colocou o filho porta afora. A imagem que ilustra essa matéria é da cena que nossa entrevistada espera ter visto pela última vez, a do rapaz debaixo de um pé de jaca ao relento depois de horas consumindo droga.
Com uma folha de caderno em mãos, a mãe recebe o Lado B na sala de casa. As palavras contam em tópicos o que ela acredita ser importante compartilhar como mãe de um dependente químico. Na memória está o abraço dado na visita mais recente à clínica onde o filho está em tratamento. "Toda vez que eu vou lá visitá-lo eu venho com esperança. Eu vejo ele assim, como se diz, muito diferente de quem ele é nesse mundo aqui fora, porque a droga escraviza demais".
"Manipulada" em diversas situações, a mãe já perdeu as contas de quantas recaídas o filho já teve depois de sair bem da comunidade terapêutica e dizer para si mesmo que agora passou. "Ele fala: eu não vou mais te decepcionar, não vou mais fazer o que eu estava fazendo. Eu vou cuidar da senhora... E ele me manipula. Quando dá dois, três meses eu começo a perceber o comportamento "droga", ele começa a mentir, o que já me deixa em alerta", relata.
As mentiras são "vou ali e já volto, "vou caminhar", "vou à academia", "só comer um salgado". As horas passam, o dinheiro some e o filho pratica roubos. "Ele não é ladrão, ele está ladrão. A droga é que rouba", explica. Em casa, as coisas começam a ser escondidas e trancadas, até que o semblante do rapaz joga na cara da mãe a volta do vício. "Ele vai ficando magro, feio, ansioso, não dorme e é essa batalha, toda vida nessa batalha..."
Com o lado espiritual muito presente na família, quando criança o filho sempre esteve dentro de igreja, teve a mãe "em cima", foi a psicólogos, mas nada adiantou. "Hoje minha consciência fica mais tranquila porque eu vejo que eu nunca desisti, faço terapia e depois de anos e anos, percebi que são escolhas. Eu não me culpo. Vejo que é uma doença, porque de todos os meus filhos só ele quem escolheu esse caminho. Ele teve uma pré-disposição para experimentar a droga e se apaixonar por ela".
"Só por hoje"
Essa é a frase que ela repete a si mesma e para mim três vezes seguidas. É assim que vive a mãe de um viciado: um dia de cada vez. A força dela ao relatar como é passar mais de 20 anos assim é de arrepiar. A mãe não chora. Quando a emoção toma conta da racionalidade, ela só respira firme, segura, e segue o relato sem dar uma pausa sequer para não haver chance da lágrima escorrer. "Eu já chorei tanto, sabe? Mas a terapia me fortaleceu muito, muito, muito, muito mesmo. Até eu fico assim, admirada, de não estar chorando mais".
Ela já foi atrás do filho em boca de fumo, rodoviária, esquina e calçada com o sentimento de tristeza, angústia e raiva e, nas mãos, alimento. "Cada vez é diferente. Eu já chorei, abracei, falei: 'meu filho, vamos orar', você esqueceu que tem uma casa? Uma família? Um quarto limpo? Uma cama? Que a geladeira lá de casa está cheia?'". E do outro lado só se ouvia o silêncio.
O que ela mais sente e se arrepende é das vezes em que se descontrolou. "Eu xinguei ele e aí cheguei em casa muito, muito mal. Mas nunca disse: 'você não tem mais jeito'. Acho que Deus nunca permitiu que eu falasse isso".
Por recomendação do terapeuta e também do grupo de Amor Exigente, a mãe deixou de levar remédios e alimentos para o filho nas ruas. "É errado. A gente não pode ir atrás, você tem que deixar ele quebrar a cabeça, mesmo que venha a pior das consequências, a gente não pode ir atrás. Eu cortei tudo, os remédios dele, porque ele gostava de tomar para dormir de dia", conta.
A última recaída, que chegou a ser registrada em fotos pela mãe, foi a mais difícil para ela. O telefone de casa tocou e era uma amiga informando o paradeiro do rapaz. Ela tinha o visto entrar em um terreno baldio. A mãe então pegou o endereço e foi lá lá.
"Chamei a minha irmã, porque eu não queria ir só. Eu vi que tinha duas pessoas, uma com uma lona e o outro debaixo do pé de jaca, em um colchão, o rapaz que estava na lona não era ele. E aquele rapaz do colchão, no relento, parecia ele pela perna. Fui chegando, ele abriu os olhos e me perguntou: 'o que a senhora está fazendo aqui, mamãe?' Eu falei: 'vim te ver meu filho, ver em que ponto, em que situação você está'".
A resposta foi de que dali ele não sairia para clínica nenhuma. Sem condições de ouvir uma só palavra, a mãe se afastou e quem tomou a dianteira foi a tia.
Às 4h da manhã, a campainha da casa tocou e era o filho, depois de ter ficado ao relento, ele foi pedir abrigo para a mãe. "Ele falou: 'mãe, deixa eu entrar, e assim, no Amor Exigente - como o nome mesmo diz - é uma coisa exigente, você tem que amar, mas tem que exigir. E ele pediu: 'por favor, mãe. Eu tô com febre e frio. Deixa eu entrar. Amanhã vou para a comunidade'".
Na esperança de ver o filho se tratar, ela abriu o portão, serviu comida e armou a rede nos fundos de casa para que ele dormisse. O acordado entre mãe e filho foi de que ele se levantaria às 7h30 da manhã para ir à clínica.
No horário combinado, ele se negou. "E então eu falei: 'sai daqui. Não quero você aqui, esqueça de mim, esqueça desse endereço'. Falei com ele com muita raiva, muito nervoso, falei duro, duro mesmo. Ele levantou e saiu".
Aos prantos, a mãe descreve que chegou a se ajoelhar diante de tanto desespero. "Foi quando 10h30 da manhã a comunidade me liga, ele tinha chegado lá e estava sendo acolhido". Parte do trecho o filho fez à pé e depois pegou um moto-táxi que foi pago pelo diretor da clínica.
"Me mandaram foto dele, ele sendo acolhido, depois de tomar banho e se alimentar", descreve.
O medo continua a assombrar a família, porque para ficar bem mesmo, o rapaz precisa passar pelo menos 1 ano na comunidade. "Eles acham que com poucos meses estão bem e saem. Eu tenho medo, é um medo que toda mãe passa, mas ele me disse que se rendeu, que quebrou o orgulho e que quer ajudar quem chega lá também".
A mãe só aceitou falar por estar fortalecida e acreditar que essa mesma força que brota nela também despertou no filho. Vista como doença, a dependência química é incurável e exige, na opinião da mãe, tratamento eterno e diário.
"O fim seria cadeia, cemitério ou comunidade. Eu tenho consciência disso. A vida do adicto é controlada pela droga e a droga controla a vida dele. Para mim ele diz agora: 'muito obrigada porque a senhora não me aceitou em casa e brigou comigo'. Hoje ele sabe que se chegar a notícia de que ele foi embora, aqui ele não entra mais. Eu tô mais forte e eu nem estou chorando".
Histórias como a dela podem ser ouvidas e compartilhadas também nas reuniões do Narcóticos Anônimos, que acontece toda segunda-feira, às 19h30, na Paróquia Sagrado Coração de Jesus, na Avenida Mato Grosso, 3280.
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